Paris, 27 de fevereiro de 2007, a modelo russa Sasha Pivovarova surge na passarela da Semana de Moda da capital francesa, com um sapato preto pesado, meia calça cinza e sobrancelhas brancas. Contrastes com o vestido colorido, inspirado no keffiyeh (lenço árabe). Críticos de moda e jornalistas decretam em uníssono: É o novo multiétnico! Pretensioso e paradoxal, o estilista Nicolas Ghesquière a frente da Balenciaga faz jus à engrenagem que mantém a moda como a atual ciência do sonho. Antecipação de uma “revolução árabe” – com pitada francesa e mercantilista – no plano do imagético e do simbólico.
Na concepção da esquerda marxista, o termo revolução está intrinsecamente relacionado com a tomada de poder, com a mudança estrutural do sistema, seja na ordem social, econômica, cultural e dos costumes. É antes de tudo, a troca da classe social que comanda o país. No pensamento leninista, uma revolução só ocorre quando duas forças coexistem: as objetivas e as subjetivas. A primeira nasce das questões relacionadas à materialidade da vida das pessoas, e a última possui uma irmandade direta com a necessidade de uma liderança política, capaz de causar a “consciência nas massas”. Para o sociólogo francês Alain Touraine, a subjetivação é: a construção, por parte do indivíduo ou do grupo, de si mesmo como sujeito. Nos novos movimentos sociais – aqueles que, além de vinculados a dialética da luta de classes, constituem recentes fronteiras e novas construções históricas dos direitos fundamentais e humanos – a subjetivação pode ocorrer no contato com outros sujeitos, por meio de intervenções de mediadores, práticas educativas e lúdicas.
Balenciaga F/W 07.
E se, por “ousadia”, acrescentarmos à lógica de Lênin e Touraine, o papel fundamental da cultura e do simbólico nas construções de ideias e conceitos nas revoluções? E ainda, a moda, esse aspecto cultural recente, não como força final, mas como arquitetura dos corpos ansiosos por liberdades, que subvertem a ordem do dia, e se apropriam de suas imagens nas passarelas, para emblematizar desejos? Basta recuarmos no tempo e perceberemos essas significações. Se os Provos – movimento de contracultura holandesa conduzido por Robert-Jasper Grootveld – tiveram como signo de seu levante uma bicicleta branca, os estudantes e intelectuais franceses do maio de 1968 provocaram o desfilar de imagens poéticas no movimento hippie da década de 70.
Não cabe aqui tratar a moda como um fenômeno menor. Aspecto principal da cultura ocidental, a moda é genial, justamente por ser política. É a última instância das forças produtivas apontadas por Marx. O discurso político passa da palavra à imagem. Se pensarmos na pólis grega, destoaremos para a nova pólis contemporânea da sociedade do espetáculo. Nunca abandonamos a Grécia que há entre nós. Somos gregos, por outras vias.
No aspecto discursivo, o keffiyeh “surge” na recente Primavera Árabe, quando o jovem Mohamed Bouazizi, um vendedor de frutas ambulante, inconformado com o fato de a polícia corrupta cobrar-lhe propinas, decidiu atear fogo no próprio corpo em frente ao palácio do Governo de Mubarak. Não que este elemento do povo do Oriente Médio não estivesse lá, e não fosse considerado um símbolo, mas ganha notoriedade após o uso exaustivo durante quatro anos por jovens de todas as idades, que combinavam essa “peça-resistência” com artigos de luxo. Despolitização e deslocação semântica da indumentária.
Provos.
Por ironia, às vezes a moda nos surpreende com esse aspecto informal político, por mais que não seja essa a intenção do estilista ou da marca. Muitas vezes, esse mesmo discurso recai no desmerecimento dos fatos históricos, desprezando-os ou aniquilando-os a serviço do consumismo. Ghesquière ao colocar em sua passarela o significativo, desejava mostrar não apenas a importância da discussão étnica no cenário da globalização, mas também pedir, solicitar e apontar atenção para dois fatos que se confirmariam anos depois: a crescente onda de xenofobia, partilhada por partidos e políticos da extrema-direita, e em como a França, império de alguns países árabes como a Tunísia, sentia-se desconfortável em dividir os seus espaços públicos com imigrantes de origem árabe.
Símbolo da Resistência.
Marcha da Liberdade em SP.
Em outros momentos, estilistas buscam na palavra liberdade – recorrência frequente nas coleções – uma justificativa para incidirem em erros e caricaturas do próprio significado da palavra-conceito, ou simplesmente para espetacularizarem o visível. Na última Semana de Moda de São Paulo (SPFW), a marca carioca Reserva, apresentou a sua proposta de Verão 2012 sob a égide moralizante do tema “Cuba Libre?”. Segundo o site FFW, “A performance montada pela Reserva, em que atores com roupa militar e nariz de palhaço, enrolam charutos sistematicamente, quase passa dos limites de “sátira ao conceito da ditadura” para a tiração de sarro, mas foi uma maneira de mostrar, junto à coleção, o que Cuba tem de melhor e de pior”.
Não vou fazer críticas ao desfile, mas ao discurso que a misancene provocou, ou deixou de provocar. Em primeira instância, não há nada revolucionário em apontar os fatos apenas pela via do senso comum. Menor ainda é considerar subversivo “algo isolado”, deslocando a realidade social, em detrimento de fatos econômicos.
Neste cenário, um grupo de guerrilheiros, entre eles os irmãos Raul e Fidel Castro e o líder revolucionário Che Guevara, ainda sem a intenção de instaurar o Comunismo na ilha, mas apenas libertar o povo cubano e devolver-lhe a soberania, declarou “guerra” ao exército de Batista. Era 26 de julho de 1953, um domingo de carnaval. Após seis anos de resistência, o grupo finalmente conquistou a simpatia popular. Com a derrota de Batista, instalou-se no país um verdadeiro clima de reconstrução nacional. Foi só na década de 60 que Cuba decretou-se oficialmente um regime Comunista. Neste período, Che Guevara mudou-se para a Bolívia, no intuito de continuar a sua sonhada missão de libertação do povo latino americano, vitimados pela miséria e pelo sentimento de colonialismo, impostos nos séculos XVI e XVII pela Europa, e continuado no silêncio após a Segunda Grande Guerra pelos Estados Unidos. Morreu jovem, em uma emboscada armada pelas tropas bolivianas.
Durante os 50 anos pós-revolução, Cuba presenciou uma transformação. Seu sistema de saúde é um dos mais avançados do mundo, conforme apontou a OMS (Organização Mundial de Saúde); a expectativa de vida (78) equipara-se à norte-americana e ultrapassa a brasileira (72 anos); a mortalidade infantil constrange a Americana: 7 para cada 1.000 nascimentos, e o índice de analfabetismo é menor que o dos EUA. Em Cuba 0,2% e no país do norte da América 1%.
Apesar de “fracassos” no campo dos direitos humanos, da “liberdade” de expressão e individual, Cuba possui o mérito de manter-se isolada em um mundo que “assistiu” a derrocada da URSS e do Muro de Berlim, proporcionando a manutenção e a garantia de direitos fundamentais. Direitos estes, que muitas vezes são negados em países de políticas progressistas e neoliberais, como o próprio EUA. Com a chegada do irmão Raul Castro ao poder em 24 de fevereiro de 2008, presenciamos a necessidade de uma mudança em relação às questões das individualidades. Esta semana, Cuba aprovou a resolução da ONU (Organização das Nações Unidas), para os direitos LGBT e de combate à homofobia. Vale ressaltar ainda, conforme já escreveu esta coluna, o papel que a ilha desempenhou para que governos socialistas chegassem ao poder na América Latina, destruindo as décadas de exploração yankee e européia.
Che Guevara.
Notamos que a reivindicação do regime formal da liberdade, como tem se posicionado os ideólogos e defensores das liberdades capitalistas, no caso de Cuba, aproxima-se da falácia do discurso norte-americano, imperialista, e neoliberal, que desde a crise de 2005/2006, ou melhor, em 11 de setembro de 2001, mostrou-se um verdadeiro fracasso. Não é à toa que, populações mundiais têm lutado por uma Democracia Participativa e o Estado de Direito, não em nome de uma sociedade baseada nos moldes norte-americanos pela via da imposição, mas inspiradas em um novo modelo de socialismo, mais justo, humano, igualitário e soberano.
Imperceptivelmente, Nicolas Ghesquière em 2007 usou as armas do inimigo, e foi para a “rua”. Em uma sociedade manipulada pela mass media, pela ausência de espírito crítico e pelo pensamento único, antecipou os desejos dos manifestantes ao redor do mundo, sob a luz da simbologia. Em uma constante, os jovens árabes, os europeus, e os latinos americanos reconstroem o pensamento do teórico socialista francês do século XIX, Pierre-Joseph Proudhon, que ao preconizar igualdade e a liberdade, como sinônimos de solidariedade – o encontro de uma relação de semelhantes -, em oposição ao individualismo da concepção burguesa, coloca novamente em choque e dissolve a “liberdade” proferida pelos opressores. Enquanto a moda se ocupa da política imagética, e se despede com a entrada da última modelo nas passarelas, as ruas, e não as suposições dinamitam a frase de que no capitalismo atual “tudo que é sólido se desmancha no ar”, ou termina no último aplauso, durante o cair de luz na passarela.
Ponto de Vista: “Urgência das Ruas – Black Block, Reclaim the streets e os dias de ação global”, de Ned Ludd (organizador), Coleção Baderna, Conrad Editora (www.conradeditora.com.br).
Brunno Almeida Maia
brunnoalmeida@brrun.com
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