O Silêncio de Dionisio

Do século XX que se despediu com os seus sepultamentos, uma única verdade aflora: dizer, confessar, colocar na ordem do discurso e do jogo da palavra enquanto exercício político tornou-se uma arma. Não somente a coerção e o policiamento, típicos das sociedades burguesas, e por tantas vezes colocadas nas pautas das ciências. Não mais a censura onde esperaríamos que ela estivesse. Não mais os poderes tirânicos e as suas Ideologias, mas o silêncio e suas especificidades. Palavra que se sepulta antes de ser dita. Paradoxo da modernidade: como em uma época em que se fala tanto das possibilidades de amplitude do discurso, colocando-o nos desejos e nos lábios das massas, o não-dito se apresenta sob a forma de tortura?

Ao escrever coloco-me diante de uma centelha, e todo um aparato discursivo é colocado à minha disposição. Os cenários dos confessionários das igrejas, das salas de psiquiatria, dos médicos inquisitivos e dos jornais que se desmancham em críticas à sociedade, pela sociedade, se deslocam para novos aparatos de tecnologias. Por onde começar, o que dizer e o que deixar de lado? Novamente, o herói “trágico” sai de cena. Dionísio, e não Deus, ao contrário do que Nietzsche imaginava, está silenciado, e só no Século das Crises, como bem definiu Eric Hobsbawm, sentimos o fétido cheiro de seu sepulcro.


Dionisio.


Debruço-me sobre a filosofia nietzschiana, não por esnobismo, mas justamente por ela, por meio de uma poética própria, ter sido o principio de aniquilamento das “verdades”. Esse desejo, que desde o homem socrático manifesta-se como ponto central e único da ciência. E onde mais o homem moderno, desde as revoluções burguesas, as Idades Clássicas e das Luzes procurou ancorar a validade de seus discursos, se não nas verdades?

“Só sei que nada sei”, do filosofo grego e fundador do pensamento ocidental Sócrates estabelece esse limite entre um passado trágico pré-socrático, dionisíaco por excelência, e esse pulsar humano na busca das objetividades. Não mais o homem como um coletivo, mas como ser errante em busca da apropriação de pensamentos, que só se valida, ao acaso da materialidade exterior. Ciência e teologia da praticidade.

Ora, se desde esses tempos, essas foram as “únicas formas” de validação do discurso, o anterior a isso é a barbárie? Pretensão e presunção humana. A mágica da existência para os pré-socráticos ou trágicos residia justamente na busca de uma verdade que só se validava pela via do artístico, do sofrimento, do trágico, ou da estética da existência. Palavras que para nós, ocidentais modernos, tomou um sentido amplamente dualístico, ritualizado e moralista em uma prática judaico-cristã. Os gregos necessitavam dos deuses, não como aprisionamento de suas almas, mas como libertadores destas. Anterior à simbologia das moralidades. Desde o poeta Eurípedes e das tragédias gregas, o herói da dramaturgia só existe enquanto objeto cênico como personificação de Dionísio. Não interessava ao grego, dizer e colocar em cena suas paixões, se não fosse por um radicalismo de uma poética maior. Como bem definiu Nietzsche em seu “O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música”: “Do sorriso desse Dionísio nasceram os deuses olímpicos, de suas lágrimas nasceram os homens”. É nesta última farsa e urgência que se proclamam até hoje as angústias do homem moderno.


Michel Foucault.
E durante muito tempo, como se Dionísio permanecesse antipático, “anormal” e desdenhoso, a sociedade impôs à sua lógica de funcionamento todo um aparato de discurso, para fazer funcionar a sua mecânica de exclusão, como bem definiu o filosofo francês Michel Foucault, sobre os três grandes sistemas de exclusões que atingem o discurso: a palavra proibida, a segregação da loucura e a vontade de verdade. A primeira parece-nos demasiadamente explicita. A segunda quase aniquilada, e a terceira não evidenciada, já que a vontade de verdade desde Sócrates é a religião que comove a sociedade.

Parece-me importante discutir aqui – papel que tenho buscado desempenhar nesta coluna quinzenal – de quais maneiras os discursos se validam em uma sociedade como a nossa? Sociedade que na aparência nega, democratiza e neutraliza esses discursos. Será que de fato, nos livramos dos três grandes sistemas de exclusões apontados por Foucault?

E quando reflito sobre esses pontos, jogo luz na dialética marxista ao analisar a arte e a cultura nas sociedades pós-revolucionárias: “O que demonstra a história das idéias senão que a produção espiritual se modifica com a transformação da produção material? As idéias dominantes de uma época sempre foram as idéias das classes dominantes”, Karl Marx e Friedrich Engels em Manifesto do Partido Comunista, de 1848.

Busquemos como referência, não o plausível. Sejamos pré-socráticos pelo menos uma vez. Não por desmerecimento com as “nossas verdades”, mas se buscamos uma gênese, é preciso ir ao silêncio dos nossos sonhos. A vontade de paixão, o jogo do perigo, o trágico e o dionisíaco, que nas sociedades clássicas impunham-se na dinâmica das vidas cotidianas, toma o lugar da ciência enquanto dispositivo de sonho.


Greta Garbo, Fred Astaire e Madonna.
Desde a indústria fotográfica e cinematográfica, essas personagens, que em tempos primordiais habitavam as nossas vidas, encontram-se estatizadas por uma realidade que não nos pertence. Como se a nossa mágica da poesia tivesse sido roubada. Caminho inverso de Prometeu, que ao arrancar o fogo dos deuses, e presenteá-lo aos mortais, vê-se obrigado a sofrer as dores físicas e espirituais. O que fez a arte moderna, desde o advento da fotografia, se não retirar do “louco” e do trágico – tão combatido pelos pensadores pós-socráticos – uma maneira de silenciá-los de vez, lançando-os nas quietudes das verdades?

O que separa quase meio século da primeira fase da eclosão da Indústria Cultural (cinema) e o seu amadurecimento recente, a cultura pop? Os olhares furtivos de Greta Garbo, Fred Astaire, Sarah Bernhardt, Ingrid Bergman, as fantasias extenuantes de Lady Gaga, o sagrado e profano de Madonna, a repetição sonora e vertiginosa dos refrões de Britney Spears, e o desfilar estonteantes do jogo de poderes da moda?

Duas referências históricas quase distantes: O cinema e o seu apogeu durante as Guerras Mundiais. Fantasias que provocam e tentam ocultar uma realidade. Retorno na década de 90, quando o pop parece ser o escapismo ao ideário político e econômico que haviam desmoronado. Entre as duas forças culturais, uma coincidência e uma peculiaridade. Primeiro a massificação. Segundo as contradições dos que dizem. Novamente, os discursos adquirem sua mutabilidade.

Do projeto higienista – na arte e na estética- a sociedade reivindicou o artista revolucionário, o poeta “iluminado”, o gênio idealista, o músico boêmio, os que dizem, provocando a guerra das palavras. Causaram tanto tumulto, que hoje são “evitados”. Estes são os loucos curados do século XXI. Desta vez, não pelo enclausuramento e a prisão, mas pelo silêncio das liberdades.

Trailer Filme “A Rede Social”

E talvez aqui, nas liberdades, encontremos uma nova ordem otimista, pautada, sobretudo, pelo “poder” de multiplicação dos saberes com o advento das tecnologias. Penso longe ainda, nas redes sociais, e em como ela prolifera esses discursos. “As grandes mutações cientificas podem talvez ser lidas, às vezes, como consequências de uma descoberta, mas podem também ser lidas como a aparição de novas formas de vontade de verdade”, Michel Foucault em “A ordem do discurso”.

O que me desperta o interesse é entender não o sistema de coerção dessas tecnologias, mas em como esses discursos serão validados, redistribuídos, e colocados sob a luz do dia. Em uma lógica que parece abusar e fantasiar da massificação dos sonhos, iniciada com o advento da fotografia, quem serão os “loucos”, os “anormais” e os dionisíacos da vez? Serão mais uma vez, como bem nos mostrou as artes e a culturas dominantes, objetos para distanciar a realidade e a ficção em busca de uma nova verdade? Em qual socrático a verdade, essa sede humana em demasia, encontrará o seu eco de “Só sei que nada sei”?

Para nós, gregos ultrajados, restam-nos a sabedoria dos “gênios” que não mais são validados – em defesa de uma sociedade de rótulos e paixões – invoco Clarice Lispector refletindo sobre o ato de escrever na literatura (forma prolongada de validar o discurso) “Juro que este livro é feito sem palavras. É uma fotografia muda. Este livro é um silêncio. Este livro é uma pergunta“. O que é a política e o seu projeto, se não a ordem do discurso com todas as suas subjetividades, poderes e saberes, em uma arqueologia do silêncio?

Ponto de Vista: “A ordem do discurso” – Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970, por Michel Foucault. Coleção Leituras Filosóficas. Edições Loyola (www.loyola.com.br).

BRRUNO ALMEIDA MAIA
brunnoalmeida@brrun.com