No quarto dia de Fashion Rio Spring 2013, o grande destaque foi o desfile da Herchcovitch.
Memórias para um tempo nômade
Lembro-me de uma entrevista que Alexandre Herchcovitch concedeu no início de sua carreira. Tentava situar no plano do discurso o que era imagem. Basta recuarmos historicamente e a memória se disporá em mostrar-nos as primeiras coleções: roupas femininas sóbrias, ultrajadas de sensualidade em um preto quase fúnebre. De qual mulher falava AH? Das judias ortodoxas que frequentavam o bairro do Bom Retiro – onde sua mãe tinha fábrica de lingerie – das colegas da sinagoga e da escola. Era essa uma das primeiras influências do jovem criador. Dialético, contrapunha o seu espetáculo imagético com a tentação sagrada e profana dos povos da rua: putas, travestis, michês, drag queens e clubbers. Dois universos aparentemente díspares no desejo, mas próximos em uma lógica: territorial e geográfica. Tanto o povo judeu – pelo menos em um passado anterior ao da Segunda Grande Guerra – e o povo das ruas são nômades. Ao contrário do que algumas críticas deste Verão 2013 do Fashion Rio já afirmaram, a coleção de Herchcovitch é tudo, menos multicultural. Multicultarilismo desterritorializado, sem DNA, identidade? Marcados que somos no corpo pelo pós-identitário, seria interessante pensarmos em um nomadismo.
Se Nicolas Ghesquière teve a ousadia de antecipar em sua Balenciaga em 2007 – quando colocou na passarela o lenço árabe – a “problemática” político-social-cultural do povo árabe que vive na Europa (lembremos dos casos de Xenofobia dos governos de ultra-direita e da Primavera Árabe), Herchcovitch vai além. Sua preocupação parece ser a de ressignificar o corpo da mulher. Foco na edição apurada do desfile. Inspirada “livremente” no Oriente Médio – especificamente no norte – o jeanswear surge no primeiro look da coleção– como era de se esperar de uma marca neste segmento. Tudo é leve, “sem novidades”, mas com beleza: detalhes em estampas e bordados, calças ligeiramente odaliscas, pelerines, cinturas altas, acessórios com toque oriental e as camisas para os meninos (lindas!). Eis que um olhar atento avisa: o manifesto. Aquela mulher idealizada nos sonhos de mil e uma noites se desfaz e cede lugar aos polêmicos lenços usados pelas islamitas. Impossível não nos lembrarmos das discussões sobre o direito ao corpo das mulheres mulçumanas. Ao final, nos últimos looks, surgem cobertas na parte de cima e com uma transparência na parte inferior. Alexandre polemiza e chama a atenção para um fato histórico e político. Com a entrada dos últimos looks, AH evoca para a sua segunda marca não mais o universo do denin, mas de novas possibilidades. O nomadismo não é só no discurso, mas no desejo em utilizar outras plataformas.
Indiscutível para a engrenagem da moda, este desejo foi criado: boa modelagem, escolha coerentes de peças-chaves, corte impecável e cartela de cores apurada ao tema. Em tempos em que as discussões sobre o cenário geopolítico tomam conta das ruas e das redes sociais, fica inútil falar da moda sem que ela olhe para as recentes manifestações que estão mudando as democracias. Afinal, não é a moda por excelência um zeitgeist? E qual estilista e/ ou criador terá a coragem de fechar seu atelier de universo autista e inspirar-se obcecado pela multidão que se agita do lado de fora? Ali, onde nômades, étnicos e os povos da rua compõem uma vitrine que desestabiliza.
Editor in Chief: Bruno Capasso
Text: Brunno Almeida Maia
Ilustration: Leandro Dário
Pic: Beto Urrick
Art Direction: Tiago Gomes
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