Arnaldo Ventura, F/W 12 – Ligia Cristaldi @ BRRUN.COM.
Em um último dia de desfiles da 30ª Casa de Criadores, chegamos ao desfecho final deste filme no Cine Joia. Isadora Zendron & Lucas Devitte, Domitila de Paulo, Mauro Camargo, Jadson Raniere e Arnaldo Ventura dirigiram as cenas mais tocantes da noite.
Liberdade, Liberdade – Ponto Zero
O projeto Ponto Zero, como o próprio nome sugere, é a oportunidade que a equipe da Casa de Criadores proporciona aos jovens estilistas universitários. Com a participação das principais faculdades e universidades do país, do concurso sai um vencedor, que além da participação em um evento internacional, passa a integrar o line up do evento. É interessante notar, não só a disposição do evento em conceder este espaço – o que era de se esperar – mas principalmente em como os jovens criadores conduzem suas coleções, suas imagens de moda e as personalidades de suas futuras identidades. Assim como o espaço acadêmico, é por excelência o período de experimentação, de exercício, dos erros e do acerto, no Ponto Zero estas máximas são levadas desde a ideia da coleção à passarela. Para a surpresa de uma platéia, que estava descontente com a falta de emoção do segundo dia, os nossos estudantes traçaram um caminho oposto. Curioso pensar que, ontem escrevi em meu blog sobre a ausência de uma cultura de pensamento acadêmico para a moda, enquanto objeto de estudo nas áreas das ciências humanas. Curioso ainda foi perceber que, muitas vezes, a estrutura de mercado para alguns nomes que integram o evento há tempos não é sinônimo de território legal, seguro e fiel. Moda é apuração, treino do olhar e coerência. Não com tendências, com o feio e com o belo, mas com a coerência interna da própria marca. A palavra de ordem aqui é subverter – justamente por ser espaço de experimentação – a ordem normatizadora do mercado.
E foi essa a “lição de casa”, que esta turma de estudantes mostrou no terceiro e último dia. Isadora Zendron e Lucas Devitte (Universidade Anhembi Morumbi), vencedores desta 30ª edição, buscaram no tema aparentemente abatido da sustentabilidade o espaço de suas criações. Percebemos formas arquitetônicas, pulseiras (must have) de madeira, blusas coladas ao corpo transparentes e uma sintonia real com o uso de tecidos cinza utilizados na confecção de cobertores.
Pontual em excesso, a coleção de Isaac Lopes e Andréa Lopes (Belas Artes), embalada ao som do refrão “Minha alma canta, vejo o Rio de Janeiro…” ao falar da cidade maravilhosa, sua bossa cool e seu clima relax, pontuaram em demasia o uso de uma modelagem convencional com tecidos tradicionais. Rara exceção é a estampa imitando a calçada das orlas cariocas.
Tal sentido literal recorreu à imagem sonhadora, doce, com uma pitada de japonismo do desfile de Domitila de Paulo (Brasil Fashion Designer). Ali, a pureza do silêncio, da inocência e do lúdico orquestram baixinho com um jogo de oposições no uso do algodão com tecidos transparentes e silhueta em formato A com ajustadas. Na cena final, o styling apurado mostra à que veio: perucas pretas fakes com cabeças, que remetem o algodão doce, rezam o silêncio diáfano de singelos anjos barrocos.
Despertem! Na faculdade que revelou nomes como Dudu Bertholini, Thais Losso e, Alexandre Herchcovitch, chega nas mãos de Mauro Camargo (Santa Marcelina) – prestem atenção neste nome – o casting mais atento e coeso da temporada. Um som de sirene é acionado. Trata-se do figurino do dia a dia de policiais, bombeiros e militares? Não. É uma alerta que prova que a roupa esportiva ainda não foi tão explorado. Nas mãos de Camargo, este campo, ganha modelagem de dimensão cool, urbana e futurista (sem ser caricata) ao ser utilizado a malha cinza. Boas ideias com zíperes, como na calça cinza com bolso funcional. Não dispara a sirene, quando o primeiro look entra na passarela: um lindo macacão que dispensa o uso daquele bolero (desconfortável e desnecessário).
Nas duas sequências universitárias, a falta de emoção ou a inexperiência. Nas mãos de Daniela Passos de Souza (SENAC) o pecado em não cometer o excesso do uso de novas possibilidades de modelagens – caminho obrigatório para qualquer criador em tempos de treino – e a falta de tato em explorar os diferentes tons das mesmas cores, seja em um tecido, em um aviamento ou acessório.
Se a USP é vanguarda acadêmica em alguns campos – ou pelo menos já foi um dia – falta ainda o amadurecimento de sua cultura têxtil. De inspiração esportiva, com recortes e leggings que funcionam, a coleção do trio Karenn de Souza Lemos, Julie Serafim Santos e Tamires Borges da Silva tem espaço garantido em seus guarda-roupas, mas talvez, por uma falta de imagem de moda, não no filme emocionante do terceiro dia.
O futuro é de quem sabe ver – Rober Dognani
Depois das sereias misses de Walério Araújo no primeiro dia, foi a hora e a vez de Rober Dognani deixar definitivamente para trás a imagem forte, pesada e agressiva da mulher de seu inverno anterior. Sinônimos que foram abandonados nas formas quantitativas. As qualitativas ainda pronunciam em uníssono com a imagem de seu Verão 2012. Cabe aqui, invocar não o retrocesso, muito pelo contrário, mas o amadurecimento (coerência da emoção) de um estilista que de temporada em temporada reaquece e reafirma seu discurso. Inspirada na estética medieval com a obra do estilista Rudi Gernreich, responsável pelos figurinos de filmes futuristas dos anos 50 aos 70, o Inverno 2012 de Dognani é elegância fina do início ao fim. Este cruzamento, que pode ser perigoso, é certeiro logo no primeiro look. Um vestido de lurex (tecido utilizado para justificar as armaduras medievais) repousa em um perfume ladylike 50´s definido pela silhueta e modelagem. A utilização do cetim de seda preto no longo remete ao outro lado dos 70´s. São mulheres comportadas, maduras e seguras de si. Tão seguras e com personalidade, que na contramão da infantilização das tendências atuais, conseguem desfilar intactas com um longo preto ajustado ao corpo, e que no cair das pernas transforma-se em uma cauda. A sobreposição, que em algumas marcas e ideias aparecem caóticas, aqui funciona como na calça e no vestido vinho, protegidos por colares-armaduras geométricos e dourados. Um acessório-roupa de styling, que já nasce objeto de desejo. Cabelos esculturais para uma cartela de cores que transita entre o preto, marrom, creme, vinho e uísque. O último vestido, em um cetim de seda evidencia em como a imagem clássica, para os tempos que correm, pautados pelas excitações pela “novidade da novidade”, pode ser um contraponto interessante. Mas não é para qualquer um este exercício. Dognani conhece, justamente, por saber dialogar com as formas e os tecidos. Sua mulher se sofistica e sua coleção cresce, olhando para o verdadeiro futuro. Como a moda pede e deve ser…
Construindo opostos – Jacinto
A escolha do tema é a arquitetura do mestre Oscar Niemeyer com pitadas do folk europeu. Cruzamento distante, oposto, por isto, excitante para a curiosidade da moda. Se não fosse um dado elementar, que cabe aqui uma pergunta: como manusear a matéria-prima camurça e o couro ecológico sem perder a distinção, os volumes certeiros e a formas longilíneas e arredondadas da arquitetura de Niemeyer? A tentativa pode ser cruel ou ineficaz na praticidade. Os seis primeiros looks da coleção definem esse desejo, pelo viés do positivo. A sequência é uma tentativa de reconciliação e de pedido de paz diplomático entre as formas do velho comunista brasileiro e de um material difícil de manusear. Funciona o vestido de recorte geométrico em formato A e os tons de terra da cartela de cores. A pedraria ofuscante em alguns vestidos tenta justificar o semblante terracota da coleção. Não adianta! O brilho talvez estivesse em perceber que, o que faltava era ordenar, por isto desordenar, a imagem costumeira dos opostos conciliadores. Neste caso, da matéria-prima vs modelagem.
Sem personalismo, eis a personalidade! – Jadson Raniere
Raniere prova que tem personalidade, justamente por desconsiderar a oposição entre comercial e conceitual. Os dois extremos – árduos para alguns – caminham juntos em suas coleções. Com styling de Renata Correa, tudo ali parece funcionar, respirar moda e rua ao mesmo tempo. Ele sabe e não banaliza o significado da palavra streetwear. Partindo da construção da alfaiataria, o estilista faz um mix de looks masculinos e femininos com efeito despojado e silhueta próxima ao corpo. Temos aí, peças-desejos como os vestidos, casacos e blazers masculinos de patchwork, os tricôs cinza masculinos e o “engana que eu gosto” do look masculino, que ao compor saia plissada preta com colete, proporciona a sensação de vestido. Sacadas de stylists: a estampa que se alonga após o punho, e se transforma em uma luva da mesma padronagem, e as meias com cintas-liga. Sem definição de tema aparente, Raniere mostra que muitas vezes, é a harmonia e a composição do agradável que transformam e justificam a coerência de uma coleção. Talvez, por que deixe de lado, o personalismo do criador quando se transforma em artista, para ampliar seu território de personalidade. Exercício que vale para todos!
“Se não me deixarem sonhar, vou fazer barulho…” – Arnaldo Ventura
O grupo Shinkyodaiko de taikô, composto por jovens músicos japoneses organiza no palco seus instrumentos. De imediato, percebemos que a coleção de Arnaldo Ventura fará uma viagem “exótica” ao Japão. Já assistimos a este filme, certo? Trata-se de um remake? “Se não me deixarem sonhar, vou fazer barulho…” foi com esta frase emblemática e curiosa – que logo me remeteu à inquietude de Glauber Rocha: “fala baixo se não eu grito!”, – que o artista esculpiu e desenhou durante meses a sua nova coleção. Fugindo dos clichês e das obviedades recorrentes neste tema, o passaporte tem destino ao Oriente, com passagens pelo Japão, China, Mongólia e escalas na Turquia e no Egito. As roupas femininas e masculinas partem de um trabalho autoral de releitura da alfaiataria. Em tempos de crises (culturais) no ocidente – por isto, acho interessante a linguagem e o discurso que Ventura estabelece – é interessante este ponto de fuga escapista nas culturas ditas orientais. Calças, paletós, camisas, saias, vestidos e casacos, trajes aparentemente europeus e contemporâneos, são desconstruídos sob a ótica oriental. Os quimonos, peça-chave da indumentária japonesa, viram saias e calças de cetim masculinas. Chapéus remetem aos trabalhadores chineses e as bolsas aos mongóis. As cores transitam entre o caramelo, terracota e o preto em tecidos como zibeline, lãs, sedas, jacquard e malha. A estética e o ritmo que prevalecem em nada lembram a paciência usual dos orientais. Pelo contrário, a coleção de Ventura está mais próxima de uma brutalidade, uma visceralidade, agressividade, peso e personalidade de um Akira Kurosawa. Em alguns momentos, por conta da trilha sonora ao vivo, temos a impressão que se trata de uma tribo distante de nossa realidade. As estampas inspiradas em placas mães de computadores (lindas, meio 70´s) logo sugerem a ideia central do desfile. Que civilização conseguiu manter as tradições, e mesmo assim, olhar para o futuro? Com esta discussão e uma imagem de moda poderosa, Arnaldo Ventura não só colocou o seu sonho no cerne das discussões contemporâneas – crise, velocidade, identidades em choque, culturas que se transformam, tecnologia -, como questionou nosso próprio olhar – por vezes prepotente – ocidental. Ao pedir licença para sonhar, o criador fez barulho, não só com os looks apresentados, mas em toda a emoção que faltava ao evento. Sem dúvida, um dos desfiles mais curiosos e arrebatadores da temporada.
Muito barulho por nada – Sumemo
Com casting para lá de estrelado, incluindo Alex Atala, Julia Petit, Dudu Bertholini, Marina Dias e Matheus Verdelho, a marca de streetwear do skatista Alex Poisé encerrou a 30ª edição da Casa de Criadores. A trilha sonora aqui, executada ao vivo por uma banda de rock em uma passarela, não deixou dúvidas do tema da coleção “do lixo ao luxo”. Os looks, essencialmente comerciais, aparecem em modelagens convencionais, com acabamento de alfaiataria, estampas e bordados, jeans, moleton, malha, tricô, couro e lã boucle. As estampas de caveira, soco inglês e aperto de mão surgem sobre tons neutros como branco, preto, marinho e verde militar. Uma evidência de que tudo corria muito bem, pelo menos para estas tribos… De estética caótica, a direção do desfile, que teve styling de Marcelo Sommer, mostrou o que significa a “Sumemo”: nada e tudo ao mesmo tempo. O importante aqui é a tão ambicionada atitude. Há um tom de deboche agressivo, como se aqueles modelos (formados também por gente da vida real), falassem: “mas afinal, povo da moda, não falamos tanto de liberdade de expressão e de estilo?”. Apesar do discurso forte, o que se viu foi uma coleção que não cabe em um trabalho autoral, logo, na Casa de Criadores. O espetáculo, no entanto, foi garantido pela banda de rock e pelo numeroso casting. Talvez, não um desfile para encerrar uma semana de moda, que teve um trabalho de pesquisa de estilistas como Karin Feller, Walério Araújo, Arnaldo Ventura, Jadson Raniere e Ale Brito… O público, que acabara de se emocionar com a estética definida e entorpecente de Ventura, foi levado para um porão barulhento. Talvez, não fosse a hora de pensar, mas sim de agir. Afinal, já passa da meia noite. Lá fora, uma chuva forte ilumina e refresca a cidade de São Paulo. O povo da moda, parado na frente do Cine Joia, aguardando a estiagem está agitado por conta da última apresentação. No bairro da liberdade, este tão sonhado desejo do estilo, assistimos à última cena deste filme. O tom surrealista debochado de Fernando Cozendey no primeiro dia, aqui, lava a alma sob o romantismo e a simbologia da chuva. A sensação de “limpeza” foi: “não se preocupem, moda é isso. A próxima temporada, quem sabe, terá um final feliz”. É este, o mistério da moda atual. Até a próxima!
Edição: Bruno Capasso
Texto: Brunno Almeida Maia
Fotos: Ligia Cristaldi © Copyright – BRRUN.COM / Divulgação / Marcelo Soubhia — Agência Fotosite