Um Verão Escaldante

Um Verão Escaldante

Natureza Morta

Quando Deleuze chama o cinema de Philippe Garrel de “o primeiro caso de um cinema de constituição, verdadeiramente constituinte: constituir os corpos, e com isso devolver-nos a crença no mundo” é para ilustrar a formatação deste universo bastante particular no qual corpo e personagem são a um só tempo as posturas estruturais de uma encenação única, quase perdida, em vias de um desaparecimento empoeirado, obscuro.

O cinema garreliano torna-se um devaneio, um sonambulismo fantasmagórico, drogado, alucinado e alucinógeno de luzes opacas a ponto de um jogo de ausências e presenças mortificadas, ressuscitadas, encenadas lentamente num ritual cinematográfico que, “infelizmente, corre o risco de só desenvolver seus efeitos a longo prazo”. Um cinema inverso a sua própria herança atribuída pós nouvelle vague. Inverso, como um negativo.

Um Verão Escaldante

Se existe alguma influência ou intercessores artísticos que resplandecem em sua filmografia não é exatamente aos seus irmãos da ‘políticas dos autores’, mas sim ao cinema de Epstein, Warhol e Dreyer ou (o Godard de Alphaville).  Seus filmes são formados por um gênese de fantasmas e manequins, assustados ou sonolentos em suas paixões vitimadas, desorientados entre os automatizados modelos de Bresson e as figurações documentais vistas silenciosamente nos espaços urbanos.

Sua herança é fabular, romântica e mítica, evaporando-se à noite em sombras e projeções, estouros de luz, danças juvenis coreografadas ao mesmo tempo fúnebres e encantadas, soltas de uma naturalidade ensaiada. A madrugada experimental de Garrel assombra a família e o cinema, elos inseparáveis de sua vida, em delicada simbiose em seus filmes.

Das encenações formais de ‘La Révélateur’ e ‘La Cicatrice Intérieure’ passando pelos filmes portraits assombrados de ‘Les Hautes Solitudes’ e ‘Le Bleu des Origines’, aos metalingüísticos ‘L’Enfant Secret ‘, ‘Elle a passé tant d’heures sous les sunlights…’, ‘Les Baisers de Secours’ e ‘Sauvage Innocence’ aos ‘narrativos’ e sentimentais ‘J’entends plus la guitare’, ‘La naissance de l’amour’, ‘Les Amants Réguliers’, ‘La frontière de l’aube’ a este ‘Um Versão Escaldante’ (e uma série de outros títulos menos [ou mais] obscuros) contemplamos uma cinematografia de tenebrosa poesia no qual os corpos se tornam lápides pictóricas ou xilogravuras cintilantes em busca do sonho ou do transe do espectador que as invoca.

Um Verão Escaldante

A gênese e a queda de virtuosidades vagarosas, o sempre nascimento e desamparo. Para Garrel a realização de um filme é como a concepção de um filho e se o tema abstrato ou explicitamente visual e narrativo em vários de seus filmes não fosse facilmente notada, chegam aos olhos a presença cada vez mais icônica de Louis (e antes dele a de seu pai, Maurice) Garrel em suas recentes produções. A tentativa devastadora e apaixonada pela tragédia, a presença branca ou negra de um desaparecimento súbito das presenças. Garrel se apropria da ausência dando-lhe um corpo. Como num acordo demoníaco em troca o cineasta entrega ao vazio o corpo original, seu personagem, seu ator.

‘Um Verão Escaldante’ é a consagração deteriorada deste fenômeno de esvaziamento ou desfacelamento dos corpos narrativos em tempo se tornarem apenas corpos descritivos, objetos do espaço. O mimetismo que acompanha personagem e atores se esvai na medida em que desaparecem os vínculos com a história, desapegando-se de suas ações e falas, transformando-se apenas em imagens motivadas e enfeitiçadas pela câmera.

Um Verão Escaldante

Logo no início do filme saberemos pela voz over de Paul (Jerôme Robart) que seu amigo Frédéric (Louis Garrel) está morto. A narração de Paul nos acompanhará novamente em outros momentos e fará o retorno temporal ao momento em que o amigo ainda estava vivo. O interessante é perceber como Philippe cria para o personagem de Louis e de sua mulher Angèle (Monica Bellucci), uma atriz de cinema italiana, o contraponto figurativo e estranhamente mortificado aos personagens de Paul e sua namorada Elisabeth (Céline Sallette), uma também atriz recém iniciada na carreira, estes bem mais realistas sob vários pontos de vista.

Ambos os casais acabarão por passar uma temporada juntos em Roma, porém o verão anunciado no título em nada aparecerá deslumbrante, em tons quentes e confortáveis. Neste breve aprisionamento úmido e abafado os casais estão inundados pela presença de um hipnótico e vampírico azul. Da mesma forma que em ‘Precisamos Falar Sobre Kevin’ assistíamos acima de tudo um aplicado estudo em vermelho, aqui encontramos o oposto azulado deste mesmo movimento. Este desvio para o azul enfraquece a cada plano tudo a sua volta, sugando a um só tempo as relações e as individualidades, desmoronando os afetos e as lembranças, transformando a imagem simplesmente numa imagem.

Um Verão Escaldante

Não é por acaso que um dos primeiros planos do filme é o de Monica Bellucci deitada nua, renascentista, porém fria, em uma cama como se estivesse aprisionada numa pintura. Ela olha provavelmente para Frédéric, um pintor, ao mesmo tempo em que olha para a câmera e para nós. Angèle pede por algo que nos é negado. Em ‘O Desprezo’, de Godard, filme que Garrel explicitamente faz questão de associar a ‘Um Verão Escaldante’, ouvimos antes do fim o pedido de ‘Silêncio’. Lá, também na Itália, assistíamos ao último plano de ‘A Odisséia’, o filme dentro do filme dirigido pelo próprio Fritz Lang via Godard. Aqui, o pedido primordial da tomada cinematográfica torna-se um corpo. Novamente a troca ontológica garreliana do corpo para a ausência e do vazio para o corpo. Não ouvimos o silêncio (a palavra), vemos o silêncio (sua mudez ou surdez), já começamos mortos. Corte para o suicídio de Frédéric.

Além disso, o plano de Bellucci sobre a cama incite melancolicamente ao plano de nudez de Bardot em ‘O Desprezo’. Lá a estrela de bruços conversando com Piccoli dialogando sobre o mapeamento apaixonado de corpo a partir do olhar e da predileção completa dele. A conversa envolta por trocas cromáticas de luzes ia de uma graciosidade infantil em tudo o que esta tem de maliciosa e pura até uma constatação amarga e funesta sobre a relação e inevitavelmente sobre suas vidas (enquanto alvo vivo de fato), tudo isso naquela que talvez seja a única cena realmente afetiva do casal durante todo o filme. Em ‘Um Verão Escaldante’ os sintomas amorosos e viventes do filme de Godard se tornam ainda mais destinados ao fracasso, a separação e a morte. Se lá começávamos bem aqui tudo já começa mal. A nudez dourada de Bardot um recorte de luz envolto de certo desamparo e sombras em Bellucci. Garrel converte o par a um número ímpar, indivisível a qualquer correspondente duradouro. Ao casal que dialogo sobra um corpo solitário num monólogo destituído de sonoridade.

Um Verão Escaldante

Há ainda outras correspondências expressivas entre ambos os filmes como a já mencionada geografia italiana, o próprio templo do cinema italiano, a Cinecittà como palco para ações lá e cá e o inevitável peso do dinheiro sobre as coisas. Godard afirmara certa vez como para ele ‘O Desprezo’ mostrava (corajosa e sinceramente) como nenhum outro filme já feito como o cinema era responsável pela degradação das relações humanas.

Este cinema, doutrina dos autores, reunião das musas e dos deuses (novamente ‘A Odisséia’, Zeus, Homero, mas também Lang, Bardot) tão agraciado por reunir pessoas e corações num mesmo espaço poderia ser tão nocivo às relações humanas de seus bastidores, os extremos das forças. A Cinecittà de ‘O Desprezo’ ainda era iluminada pelo frescor dos anos sessenta, as evocações de Fellini e seus cenários como se apesar de todo o trabalho o cinema fosse uma ascensão inspirada ao contrário da Cinecittà de ‘Um Verão Escaldante’, aspirando ruína e abandono, esquecimento e passado. Se a sociedade mudou radicalmente nas décadas que separam um filme do outro, Garrel tenta dar conta deste intervalo desgastado pelo tempo, procurando em seu filme esta reverberação cada vez mais enfraquecida. A eternidade dos deuses não resiste aos instantes dos humanos. Simplesmente sucumbimos enquanto perdemos os laços estabelecidos, os profissionais, os divinos, sentimentais, vitais.

Um Verão Escaldante

Ao longo do filme os corpos distanciados, quase que de madeira, deslocados da realidade (Garrel, Bellucci) vão perdendo os contatos e os olhares, escapando-se por entre os quartos e os passeios de verão, diminuindo cada vez mais suas realidades, transformando-se em personagens atores, personagens figuras à medida que os corpos aproximados (Robert, Sallette) vão procurando sobreviver bem ou mal ao acúmulo das seqüências, das obrigações e durezas impostas pela vida e pelo filme.

Um Verão Escaldante

A desesperança impera gradativamente sobre as figuras deixando que elas se tornem uma superfície. O adeus de Camille em ‘O Desprezo’ reverberado no adeus de Angèle bem como o acidente de carro inevitável aos amores e aos amantes. Lá mais uma vez em par, aqui novamente solitariamente. Da cama ao caixão pouca diferença resta, juntos ou sozinhos o corpo sempre acabará estendido e desacordado. Garrel, entre Freud e Lumière, cineasta abençoado daqueles que amam ou dormem, vivem ou morrem.

MATHEUS MARCO

Fotos: Divulgação