“O mais profundo é a pele.”
Paul Valéry
Assepsia Sexual
Em ‘A Bela Adormecida’ uma jovem e bela princesa adormece a partir de uma maldição num sono profundo e eterno até que um príncipe apaixonado venha até seu leito de morte e sonho e deposite em seus lábios um beijo de puro amor. A versão mais conhecida do conto é a feita pelos famosos Irmãos Grimm, publicada em 1812, na obra ‘Contos de Grimm’ sob o título ‘A Bela Adormecida’ ou ‘Dornröschen’ no original.
A história dos Grimm tem como base o escrito de Giambattista Basile, extraído de ‘Pentamerone’, cuja primeira versão a ser publicada data de 1634 e também a escrita por Charles Perrault, publicada em 1697 dentro do livro ‘Contos da Mamãe Ganso’ sob o título de ‘A Bela Adormecida no Bosque’, que por sua vez também se inspirou no conto de Basile. Em 1890 o mesmo conto foi adaptado para o balé por Tchaikovsky utilizando-se da história de Perrault até se popularizar em 1959 através da magistral adaptação da Disney, cuja animação se baseia tanto no balé de Tchaikovsky quanto no conto de Perrault. Recentemente a diretora Catherine Breillat lançou como um feitiço seu virtuoso filme fantástico para a história intitulada ‘La Belle Endormie’. Este ano a estreante Julia Leigh sob a tutela de Jane Campion apresentou em Cannes ‘Sleeping Beauty’.
Apesar do título o filme de Leigh apenas faz referencia ao conto e seus elementos de beleza e abandono físico não se propondo a ser uma versão da história, nem mesmo atualizada como poderia ser imaginado em algum momento. Seu filme se apropria da princesa que dorme como se estivesse morta para ilustrar seu conto cinematográfico sobre uma jovem universitária de impressionante imagem que para conseguir dinheiro para sobreviver e sustentar uma vida mais luxuosa acaba adentrando num sombrio e instigante universo de requinte cujo fetiche maior será um perturbador clímax amorfo do próprio filme.
‘Sleeping Beauty’ é regido por uma esterilização de todas as suas emoções e imagens, apresentado logo de início através de uma sensação objetiva e clínica sobre seus procedimentos de direção, idéia e atmosfera. Sua decupagem é rigorosamente formal sendo feita pela opção por planos em sua maioria estáticos e abertos, modificados de maneira extremamente sutil e delicada, quase imperceptível, em algumas seqüências através de suaves aproximações da câmera fechando o quadro ou pequenos desvios e panorâmicas reenquadrando os objetos/personagens em virtude alguma movimentação. Seria inclusive possível afirmar, mesmo que grosso modo, que o filme é formado por muitas seqüências feitas por um único grande plano contemplativo e controlado.
Essa escolha permanece por todo o filme, reafirmando a coerência pelo tratamento dado à sua cadência e clima, salvo um ou outro momento em que um corte vem a interromper a ação como na seqüência da tevê sobre a vida de uma espécie de animal ou na cena de diálogo sobre a cama já no leito ‘bela adormecida’ numa conversa filmada num campo/contracampo deliberadamente distanciado em planos tão frontais de seus personagens a ponto do distúrbio da atenção pelo que dizem, no caso uma longa anedota biográfica sobre um deles. Ainda a propósito disso é interessante notar como a frontalidade rege todas as imagens do filme relevando de maneira muito especial o fascínio presente em sua história sobre o pictórico distante. ‘Sleeping Beauty’, um filme sobre a natureza morta, uma necrofilia perfumada, uma obsessão pela superfície.
Lucy (Emily Browning) é uma jovem estudante de perfil aparentemente introspectivo, menos por timidez e mais uma personalidade mais reservada e misteriosa. Suas emoções as guardadas, eventualmente sublimadas para então surgirem em lampejos em momentos específicos em situações determinadas. Para pagar a faculdade e a moradia a qual divide as despesas de aluguel com uma amiga e o namorado desta num ambiente naturalmente cheio de cobranças e dificuldades de relação inter pessoal como qualquer universitário já experimentou ao deixar a comodidade familiar, Lucy trabalha numa espécie de escritório tirando cópias de papéis e documentos numa rotina literalmente repetitiva e entediante.
Além disso, ocasionalmente a noite ela freqüenta bares e baladas a procura de pequenos flertes sem compromisso que podem gerar alguma renda adicional. Existe ainda a curiosa cena inicial que virá a se repetir mostrando a moça numa espécie de exame clínico no qual um fio ou sonda é colocado dentro de sua faringe chegando até ao estômago provavelmente num procedimento que jamais é explicado pelo filme ou personagem fazendo a entender que haja nele algum rendimento extra de dinheiro para ela já que não há, pelo menos objetivamente, menção a algum problema de saúde.
Certo dia a garota acabe descobrindo a possibilidade sedutora de aumentar ainda mais seu status financeiro e por conseqüência social, mudar de residência e ampliar seus ganhos materiais de roupas, perfumas a pequenos aparelhos eletrônicos com um novo e misterioso emprego oferecido. De um telefone público ela anota o endereço e então segue para uma primeira entrevista que já acontece em um ambiente visualmente mais polido e austero de elegância.
Dentro de uma sala ela é recebida por um rapaz alinhado em seu traje social e Clara (Rachael Blake), uma senhora impecável em seu trato, muito bem arrumada e demonstrando uma erudição e classe financeira muito acima de seu universo de costume. Como Lucy já havia de supor, e inclusive os espectadores, o novo emprego de alguma forma envolve o charme, beleza e físico de garotas e a entrevista além da porção oral de perguntas e respostas será composta por uma análise ou avaliação física e estética da garota, que em pé vestindo apenas sua lingerie irá ser observada e tocada por Clara e o rapaz a procura de qualquer traço ou marca particular fazendo uma radiografia meticulosa do corpo de Lucy. Considerada ideal para o emprego ela é informada a respeito do sigilo no trabalho e recebe as ordens que deve seguir para seu primeiro dia, ou noite, no qual deverá esperar que um carro a leve para o local.
Chegando lá Lucy será recebida por outra garota já vestindo trajes minúsculos numa suntuosa residência. Essa anfitriã de poucas informações sem nenhuma empatia indica a garota a um espaço onde ela irá tirar sua roupa ficando novamente só com suas peças íntimas e também como deve se maquiar para a ocasião. Depois numa cozinha jovens chefes gastronômicos contratados e um pequeno grupo de outras moças quase inteiramente nuas são encontrados por Lucy que se junta a elas e seguem com bebidas e pratos para uma sala de jantar onde sentados a mesa estão distintos cavalheiros, uma única senhora também de terno e gravata demonstrando uma clara homossexualidade feminina e Clara.
No jantar Lucy diferenciando-se das outras garotas por sua lingerie em tom nude é encarregada de servir o vinho nas taças de cada um dos convidados, fazendo isso inclusive seguindo a etiqueta de gesto, posição e movimentos da garrafa e copos na hora de servi-los. O clima que invariavelmente lembra ‘De Olhos Bem Fechados’, de Kubrick com sua mistura de luxúria sinistra e requinte ríspido irá marcar toda a noite, feita de poucos diálogos entre os senhores e as serviçais, inclusive entre elas próprias a conversa é limitada sem grandes confissões e amabilidades confiáveis.
Apesar de ser alertada por Clara pela possível instabilidade do emprego, naturalmente sem contrato ou qualquer segurança, Lucy confia nele todas as suas chances para melhorar sua vida estudantil já que por noite a renda monetária recebida era sempre altíssima a ponto de numa seqüência a garota queimar uma nota de dinheiro e observar com atenção e seriedade o fogo gradativamente consumindo a cédula.
Outras noites se seguem em encontros sempre parecidos entre si, intelectualmente curiosos, envoltos de sigilo e certo voyeurismo distanciado pelas garotas. Nenhum contato físico. Lucy pouco se importa com a procedência daqueles homens provavelmente muito abastados social e financeiramente, muito menos pára para refletir sobre o que os leva a pagar e freqüentar aqueles jantares mecânicos e sublimados.
Eis que gradualmente ‘Sleeping Beauty’ passa a reforçar o estranhamento silencioso de sua forma e conteúdo, filmado na precisão entre o apuro clínico e a obra de arte. Todo seu trajeto da apresentação e primeiro plano até o último será o de uma intrigante anestesia como se o filme o tempo todo estivesse sob um estado lânguido, porém controlado de torpor.
Existe a lógica de uma construção amarrada onde tudo é previsto, calculado (dos enquadramentos aos próprios desígneos físicos e sexuais dos personagens), mas ela é preenchida por uma sensação ambígua, como um sortilégio ou encanto, próximo do sono (do que do sonho) e da indiferença. Não há empatias a serem estabelecidas, Lucy mesmo quando demonstra algo traço de afetividade, como quando está com seu problemático emocionalmente amigo Thomas (Eden Falk), não o faz a ponto de estabelecer um vínculo humano mais concreto com o espectador, até porque todas as relações humanas e dos próprios planos e seqüências, do próprio filme, são tratadas com distanciamento, frieza e afazia. Há somente espaço para o apego material e visual, ambos estéticas de um prazer distante por mais próximos que possam estar dos corpos em questão.
Lucy por seu exímio comportamento e beleza então é promovida e poderá ganhar muito além do que já estava recebendo. Clara então a faz ser levada para sua própria residência, uma mansão localizada numa área mais rural onde a menina é recebida com um pouco mais de intimidade pela senhora. Agora a rotina é diurna e por isso ainda mais bizarra em seus segredos e desenlaces.
A diferença deste para o emprego anterior é que Lucy precisará tomar uma espécie de chá com alguma substancia desconhecida que a fará dormir por um período de tempo. Após beber a solução ela é encaminhada para um esplêndido quarto, a tal câmara ‘bela adormecida’, filmada com especial moldura e fotografia, onde sofrerá todo o estágio de relaxamento e posterior adormecimento até que como se dopada acabará por se assemelhar a uma figura morta dormindo na majestosa cama.
Dentro deste estado cujas ações e reações físicas e mentais inexistem a não ser sua respiração e funções biológicas funcionando Lucy se porta como uma pintura, aparentemente intocada e pura. A formalidade do plano e de sua figura é modificada pela entrada de Clara e de um dos maduros e idosos cavalheiros das ocasiões anteriores. Sentados a cama Clara informa ao senhor que tudo é permitido, qualquer toque e aproximação, porém a penetração é proibida.
Assim ele, como outros homens de idade, despidos e visualmente explícitos na normalidade de seus físicos naturais e humanos, chocantes para uma indústria acostumada a traços apolíneos e bem delineados se juntam sem nenhum alarde e frenesi ao corpo desfalecido e límpido de Lucy, depositado e imóvel sobre lençóis caríssimos. Um a um, cada um ao seu modo em dias diferentes se aproveitam da imobilidade e inconsciência da menina. As vezes eles apenas dormem como um casal apaixonado, outras vezes Lucy é virada e revirada como um corpo mole e desajeitado, sendo tocada, cheirada e lambida compulsivamente sem a nada reagir, em outros é levantada e chega a cair como uma boneca de pano sobre a cama e o chão numa performance de Browning que merece um mérito ou no mínimo atenção, justamente pela entrega física oferecida à direção em seqüências como essa.
Em determinado momento Lucy começa a desconfiar através de uma curiosidade despertada por aquilo que acontecia durante o tempo em que estava desacordada, mas Clara se nega por sigilo e confiança revelar qualquer informação. Para isso certo dia ela segue até a residência em mais uma convocação por telefone com uma micro câmera a qual deixa escondida em um vaso próximo da cama a fim de registrar o que acontece enquanto está dormindo.
A escolha de ‘Sleeping Beauty’ em seu desfecho é a das mais irônicas e frias, esvaziada de qualquer emoção seu clímax demonstra a intenção anticlimática de toda a natureza do próprio filme. Negando qualquer catarse ou surpresa, indo contra várias possibilidades de horror e choque possíveis pelo roteiro e direção, seu caminho é o mais natural e apático: a assustadora letargia do registro da imagem. Ou em outras palavras tudo sempre ocorre quando a câmera está desligada, como muitos documentaristas, por exemplo, e mesmo cineastas podem vir a concordar.
A ironia gelada por um registro idealizado, perplexo de mistério e suspense que não emociona ou desestabiliza. Os verdadeiros mistérios nunca são revelados ou mesmo compreendidos, pelo corpo, talvez nem mesmo pelo cinema. Como afirmou Valéry, a profundidade está na superfície misteriosa, em silêncio e menos no grafismo estridente de órgãos e vísceras seja pela câmera ou por outros corpos penetrados. Durma bem.
MATHEUS MARCO
matheusmarco@brrun.com
Fotos: Divulgação