Potiche

ATRIZ TROFÉU

Através de uma das filmografias mais heterogenias já vistas no cinema contemporâneo de arte, François Ozon sempre conseguiu o feito de exprimir em histórias e filmes tão diferentes, em diversas cronologias, épocas e personagens, todo um percurso conduzido pela delicadeza e um notável desejo pelo encantamento.

Ozon, um eterno jovem realizador, continua não importa o tempo que passe um exímio garoto apaixonado pelos seus universos, dos mais barrocos e enfeitados artisticamente aos mais realistas e sensíveis. Há sempre uma vontade de avançar em direção a uma outra realidade, superá-la enquanto graça, pois sua única existência real não é bastante para a grande vivência de sua construção. Casos assim encontraremos em muitos de seus filmes, seja na cristalina distorção imaginativa de ‘Swimming Pool – À Beira da Piscina’ (Swimming Pool), ao romantismo quase literário de ‘Angel’, a fragilidade emotiva de ‘O Tempo que Resta’ (Le Temps qui Reste) ou em outro recente filme a junção de um realismo quase documental que tende ao fantástico na surpreendente doçura de ‘Ricky’.

No caso de seu recente ‘Potiche – Esposa Trofèu’ (Potiche), há uma grande semelhança visual e narrativa com outro filme de sua carreira: ‘8 Mulheres’ (8 Femmes), de 2002. Em ambos existe um mergulho colorido em um tempo histórico passado e reconstruído pelo cineasta com todos os detalhes expressivos de identificação. O kitsch de Ozon é perfumado pelo conhecimento dos códigos de graça já convertidos em temas, figuras ilustrativas de decoração, musicalidade, humor. Sua reconstrução alinha o melodrama literário e sonoro ao falseio caricato de suas comédias mais exageradas, no caso de ‘8 Mulheres’, às gags do alegremente político ‘Potiche’, nosso filme em questão.

Se lá o tempo era a década de 50, o flerte com a literatura policial de Agatha Christie (que reaparece em Swimming Pool em contexto e uso completamente diverso) e o musical, aqui estaremos rapidamente inseridos na iconografia vintage que vai dos figurinos às cartelas iniciais pertencentes aos 70s. Mas talvez o elo mais expressivo entre os filmes, maior do que a caracterização histórica ou os exageros da dramaturgia em favor do riso é certamente a presença robusta de Catherine Deneuve.

YES SIR, I CAN BOGGIE

Deneuve não apenas serve ao título do filme enquanto a esposa modelo que se torna ao longo dos anos um mero adereço em meio a outros objetos e funções domésticas. Sua personagem, Suzanne Pujol, é uma típica mulher dedicada a si e ao lar, apresentada dessa forma já nos primeiros minutos de filme na graciosidade com que faz exercícios ao ar livre, em um vestuário a la Datarock, enquanto observa a plácida natureza, a delicada fauna local e faz pequenas anotações e poesias para depois já em casa demonstrar como cuida de sua família e, principalmente, de seu marido Robert Pujol (Fabrice Luchini).

A família Pujol é dona de uma fábrica de guarda-chuvas que anteriormente era do pai de Suzanne, mas que atualmente após décadas de matrimônio ficou a cargo da direção de Robert. O casal possui dois filhos, Joëlle com seu visual Farrah Fawcett (Judith Godrèche), de perfil mais direitista e conservador e Laurent (o ator dardenniano Jérémie Renier), reflexo de uma juventude ‘revolucionária artisticamente’. E é justamente a partir de uma conversa entre mãe e filha no quarto que Suzanne percebe claramente como é apenas mais uma peça dentro da máquina familiar burguesa, como um vaso, ou mais especificamente como um troféu que o marido guarda com satisfação dentro de sua residência controlada e aparentemente harmônica.

Não que Suzanne assim como uma série de outras esposas não saiba das eventuais aventuras de infidelidade do marido, seja com mulheres locais nas noitadas que acontecem no Badaboum Club, espécie de discoteca da cidade, ou mesmo com sua fiel secretária Nadège (Karin Viard).

É então que a dedicada profissional do lar Suzanne começa a se transformar lentamente, primeiro pela tomada de consciência de sua posição inerte no cotidiano doméstico e posteriormente devido a um fator externo que vem quebrar mais uma vez a tranqüilidade de sua vida rotineira e previsível. Se o incômodo com sua atual função mecânica em casa e o tratamento quase protocolar recebido pelo marido não forem suficientes fortes para fazê-la mudar suas atitudes, algo virá de fora provocar uma reação direta dessa mulher. Além da política interior, sobre sua existência no âmbito familiar, surgirá uma razão maior, coletiva e urgente.

A fábrica de guarda-chuvas não passa por bons momentos, os trabalhadores estão insatisfeitos e prometem instaurar uma greve nas atividades o mais rapidamente. Robert e seu posicionamento de ferro perante as exigências dos funcionários não atenua em nada a crise em todos os departamentos e a situação chega a seu limite quando ele é mantido refém dentro da indústria pelos próprios trabalhadores numa alusão clara a ‘Tudo Vai Bem’ (Tout Va Bien), de Jean Luc Godard e Jean Pierre Gorin. Saem as salsichas e entram os guarda-chuvas, numa outra bela referência agora feita a Jacques Demy e ‘Os Guarda-Chuvas do Amor’ (Les parapluies de Cherbourg), não por acaso protagonizado por Deneuve no auge de sua beleza e graça.

Ozon então brinca com um duplo sentido político através da sátira tanto dos costumes quanto das próprias relações comerciais e afetivas. Haverá a partir daí uma dupla instituição em jogo, a industrial e a familiar bem como um afável e divertido conflito das bipolaridades que vão das relações entre burguesia e proletariado, direita e esquerda, marido e esposa até se estender ao próprio par homem e mulher. A política tratada por ‘Potiche’ atinge Suzanne tanto no coração quanto na mente. De uma só vez em pouco intervalo de tempo a personagem se vê motivada a tomar atitudes, rever posicionamentos enquanto esposa e detentora dos direitos e deveres da direção da fábrica.

Para conseguir a liberação de seu marido, ela recorre a Maurice Babin (Gérard Depardieu), deputado esquerdista afável com as reivindicações dos trabalhadores e seu antigo affair da juventude. Babin consegue resolver o conflito através de sua intervenção, mas para isso mudanças precisam ser negociadas e feitas no espaço da fábrica. Consequentemente a ironia está no fato de que mudanças também precisam e acabam acontecendo em outras áreas da vida de Suzanne. Seu marido, Robert, sofrendo com problemas de saúde e correndo o risco de enfartar a qualquer momento se retira do comando da fábrica fazendo com que ela tome as rédeas de toda a empresa.

A revolução de Suzanne facilmente passar a contagiar tudo aquilo que a cerca, dos filhos que agora também passam a integrar a fábrica em funções que contemplam seus gostos e personalidades, aos funcionários que passam a se sentir mais motivados, num ambiente de trabalho funcional, leve e materno.

Paralelamente a isso Deneuve empresta jovialidade e beleza desenhando nuances de sua personagem nos encontros cada vez mais comuns que passa a ter com Babin mostrando como além de ícones do cinema francês, ela e Depardieu formam uma boa dupla em cena parecendo dois antigos amigos que se reencontram.

Daí para frente nada mais será como antes, mesmo que ainda continue sendo nos termos físicos anteriores. A fábrica continua onde está, Suzanne ainda mora na mesma residência e seu marido retorna inevitavelmente ao antigo posto. Tudo está no lugar de acordo com as superfícies, o tabuleiro é o mesmo, mas as peças mudaram de posição, avançaram, recuaram, brincaram acima de tudo.

‘Potiche’ com sua despretensão narrativa de enorme graciosidade nada mais é do que um grande piso de twister setentista no qual os personagens ora se divertem trocando pés, mãos e procurando manter a classe em suas posições particulares e bem resolvidas, ora dançam como num dancefloor cômico ao som de Baccara ou BeeGees. Alguns caem, outros se levantam e continuam sorrindo, mas Catherine Deneuve triunfa, vence a diversão e mostra que o grande prêmio a ser ganho é o prazer de vê-la dentro dele. C´este beau la vie.

MATHEUS MARCO
matheusmarco@brrun.com

Fotos: Divulgação.