Laurence Anyways

Laurence Anyways

 

Conjugação dos Gêneros Irregulares

 

 

Analisar o terceiro filme de Xavier Dolan é adentrar dentro de um diagrama de pelo menos uma década. Diagrama repleto de idas e vindas, traços e curvas, geometrias de espaços vazios em paralelo a conjuntos repletos de uma multidão de certezas e dúvidas. Dolan desenvolve seu filme diagrama como um épico comportamental que ora parece querer se focar no ‘eu’, ora no ‘outro’. Sua problemática é que neste caso o ‘eu’ já é um ‘outro’ em si mesmo, menos enquanto condição rimbaudiana do que como transformação de uma identidade em outra. ‘Laurence Anyways’ é uma grande estrutura temporal e formal (quase três horas de duração, dez anos em média de tempo narrativo, do masculino ao feminino).

 

Laurence Anyways

 

Estamos diante, portanto de um filme que é ao mesmo tempo uma análise sintática e morfológica. Da mesma forma em que se estudam as palavras de acordo com a sua função que elas desempenham em determinados contextos lingüísticos, estudaremos sem maior profundidade, mas com certa proximidade (principalmente de câmera em muitos momentos) a identidade interior e exterior deste (a) personagem dentro desta longa jornada. Para que possamos identificar a função anterior e posterior de Laurence (Melvil Poupaud) é preciso, assim como na análise lingüística, conhecermos todos os elementos sintáticos envolvidos.

 

 

Assim surgirão os sujeitos e predicados, os complementos nominais e verbais, os adjuntos e todos os outros elementos que giram a favor ou contra a compreensão textual. O curioso é que ‘Laurence Anyways’ justamente embaralha os termos e sentidos, além da própria forma. É por isso que surge a interessante confusão entre o que veio antes, a forma ou o conteúdo. Laurence masculino ou feminino, independente das inclinações sexuais em jogo, artigo definido ou indefinido, ‘o’ ou ‘a’.

 

Laurence Anyways

 

A identificação desses artigos é não por mero acaso ligada a uma análise morfológica. A classe gramatical pertencente a Laurence é difusa num primeiro momento, destrona as categorias, inverte as relações, recoloca os termos e os sentidos. Seus substantivos, adjetivos, advérbios, pronomes, preposições, numerais, conjunções, interjeições, advérbios e verbos parecem fazer parte de um mundo particular. Para compreender o filme e seu personagem é preciso reinterpretar o texto, não enquanto semiótica ou discurso, mas como representação social de um fato existente ou pelo menos possível.

 

Laurence Anyways

 

Alguns (pronome indefinido) não conseguem mesmo compreender o processo no qual Laurence se instaura gradativamente, adequando seus padrões e modos. Altera-se a apresentação, mudam-se os agenciamentos, os gestos, os pequenos detalhes; outra ordem, novas orações. A disposição do corpo e da mente do personagem reivindica um novo formato de observação e análise. Se acreditamos sempre em dias melhores para Laurence, tal sujeito ainda é oculto e o adjunto adverbial de tempo nem sempre garantirá a certeza de uma felicidade.

 

 

O que ‘Laurence Anyways’ nos revela é que acima do interpessoal a pessoalidade ainda resiste. A ironia é que o filme justamente seja no fim das contas um romântico passeio por uma relação amorosa que exaustivamente tenta continuar, porém não resiste sucessivamente às mudanças de humor, de clima, de acasos e destinos. No fim o importante é a passagem, a honestidade e a beleza do amor entre Laurence e Fred (Suzanne Clément). O que permanece é a lembrança desta troca corajosa a resistir a todas as mudanças, porém o que resta é apenas a individualidade. ‘Laurence Anyways’ um filme que vai e volta, do presente ao passado, ao futuro, do homem à mulher, do eu ao outro.

 

Laurence Anyways

 

O que resiste acima do tempo e da natureza é a individualidade. De qualquer forma, sendo ‘ele’ ou ‘ela’, sobreviveremos apenas em nossa rotação particular. A melancolia presente no desfecho do filme é a de um sorriso cheio de lágrima, pela saudade de um tempo que não voltará.

 

A indagação exposta no filme é a de que não importa quais os lados expostos em termos sociais, um cabelo curto ou comprido, pois os signos não dão conta das vontades internas. Nesse sentido, fica clara a opção por não fazer de Laurence um homossexual. Mesmo que o filme não explicite se a mudança de sexo propriamente dito ocorreu ou não, é claro e objetivo o fato de que o personagem ama sua namorada, estando num corpo masculino ou feminino. Dolan sai da escolha cômoda (sem se aprofundar seja por falta de tempo, por vontades estéticas ou por imaturidade) de fazê-lo tornar-se um ícone pré-determinado. Laurence por assim dizer está mais próximo de Laerte, tendo Andrej Pejic no meio, do que de Lea T. e outros transexuais (gays ou não, se é que ainda o seriam dentro deste novo contexto físico e psicológico).

 

 

Um filme sobre a reinvenção do corpo e as nuances de gênero cada vez mais comuns, mais diversas e atuais. Tratemos de intersexualidade mais do que de uma transexualidade, saibamos repensar os códigos e aquilo que nos dizem. O drama em ‘Laurence Anyways’ não único ou totalmente relacionado a radical transformação de seu personagem, mas a segurança desta transformação ou desta aceitação, a permanência de sua afirmação como ser humano diante de um terceiro. Já era assim em ‘Eu Matei a Minha Mãe’ quando a aceitação homossexual de seu protagonista incidia muito mais no relacionamento materno do que para si mesmo. Em ‘Amores Imaginários’ mais uma vez havia a amizade e as individualidades precisando manter-se firmes diante de um outro alheio. Dolan está mais interessado em sobreviver ao ‘outro’ do que em compreender o indivíduo.

 

Laurence Anyways

 

Acima das sintaxes e morfologias embaralhadas, Dolan conjuga os tempos de alegrias e exaltações, desânimos, fraquezas. O infinito tão esperado intercala-se a pretéritos perfeitos e a um futuro que no seu último plano ainda é passado. A morfologia do verbo ‘amar’ em ‘Laurence Anyways’ é terrivelmente regular de acordo com sua natureza, porém o que prevalece é sua semântica transitiva e intransitiva ao longo dos anos e mudanças. Entre Laurence e si mesmo apenas o infinitivo impessoal ‘amar’, ponto. Entre Laurence e Fred somente o pretérito imperfeito do subjuntivo resiste.

 

 

 

MATHEUS MARCO

 

 

Fotos: Divulgação