AMO ERGO SUM
A máxima de René Descartes sobre o pensamento e a existência é deslocada por Luca Guadagnino para o campo sentimental, transferindo a filosofia de sua parte intelectual para transformá-la num silogismo emocional provado (literalmente) em todos os sabores e intensidades. Se para o filósofo a compreensão de sua existência vinha a partir da dúvida seguida ao questionamento e reflexão sobre ela, no filme de Guadagnino a tomada de consciência vem através da paixão (mais até do que do amor propriamente dito) e posteriormente da loucura, o desapego e abandono por tudo e todos.
Apesar de ‘Um Sonho de Amor’ (Io Sono L´Amore) não procurar razões filosóficas para sua existência, ao contrário, é um filme preponderantemente orgânico, sensorial e pouco intelectual em suas digressões, ele dá vazão a interessantes questionamentos da ordem do pensamento para que possamos entendê-lo ou senti-lo melhor, vai da preferência de cada um. Se o título original (esqueçamos o devaneio simplista da “tradução”) poderia nos remeter a uma reversão na condição existencialista de Descartes, acho pertinente nos apropriar de outro filósofo, ou o criador de conceitos, Gilles Deleuze. Não que o filme em si parecesse a ele caso ainda estivesse vivo digno de suas inspiradas análises como aquelas contidas em seus livros sobre cinema ‘A Imagem-Movimento’ e ‘A Imagem-Tempo’, porém ele cabe muito bem a algumas de suas opiniões, principalmente as referentes ao amor e ao desejo.
Em uma rara senão única aparição em vídeo, o que exclui naturalmente as imagens de registro e arquivos em conferências em universidades e palestras, numa entrevista ou diálogo intitulado ‘Abecedário Gilles Deleuze’, o filósofo fala na categoria destinada à letra ‘D’ sobre o desejo. Para ele o desejo nunca é único ou destinado exclusivamente a um elemento individual, mas sim formado por relações entre diversos elementos que os fazem ser desejáveis dentro de um mesmo conjunto, ou seja, desejar seria construir um agenciamento. Em outras palavras o desejo nunca está contido apenas na ação de desejar ou no substantivo desejado, como se fosse espécie de oração incompleta.
Deleuze remete inclusive a Proust ao exemplificar o desejo por uma mulher que segundo ele nunca é limitado apenas na figura feminina, seu sentimento absorve e é absorvido simultaneamente por uma série de outros elementos próximos criando um envolto que transforma a mulher o foco desse sentimento. Desejar uma mulher significaria no caso desejar também a paisagem em volta dela, mesmo que esta não fosse conhecida, mas apenas pressentida e enquanto esta paisagem, ou vestido, perfume, não estiver desenrolado o desejo por essa mulher não estará completo.
Deslocando-se do exemplo da mulher desejada para a mulher que deseja retornamos ao filme. A idéia deleuziana (compartilhada com Félix Guattari) sobre o agrupamento intelectual, imaginativo e em outras e mais importantes instancias visual, olfativo, sensoriais por assim dizer ilustra bem o próprio procedimento de ‘Um Sonho de Amor’, tanto para sua protagonista quanto para o próprio filme enquanto corpo independente, obra ou no caso um digníssimo capolavoro da linguagem cinematográfica.
Encontraremos um roteiro bem desenhado com uma narrativa progressiva que atende ao ritmo imposto pela direção sabendo faz uso de respiros, reviravoltas e diálogos bem desenvolvidos (como a afirmação sobre o estado de estar feliz dito por Elisabetta a Edoardo em Londres), a fotografia bem delineada de Yorick Le Saux e o conhecimento apurado das cores como um bom italiano deveria saber, a montagem muito bem ordenada de Walter Fasano, a magnífica trilha de John Adams, o figurino de Antonella Cannarozzi através de peças Jil Sander e por aí vai em todos as áreas e chefes de equipe.
Guadagnino não é nenhum cineasta condicionado a recursos autorais explícitos ou escandalosamente formais nem mesmo um mero executor de uma idéia, um roteiro. Ele consegue estar no entre dois desses dois pólos conseguindo o belo feito de realizar ao mesmo tempo um filme que contempla (e o termo é bastante apropriado) tanto um cinema aflorado por imagens inspiradas, artísticas e um tratamento luxuoso da mise en scene quanto a filmes ágeis e montados em cima de uma história com força e andamento progressivo. É inclusive explícito em entrevistas que ele e Tilda Swinton (protagonista, produtora e amiga de longa data) tinham como intenção desde o início do projeto desenvolver um filme que conseguisse reunir tanto a áurea meticulosa de grandes filmes americanos e europeus com uma fluidez própria do cinema contemporâneo.
A intenção de unir o clássico ao moderno que muitas vezes resulta em tentativas frustradas funcionou surpreendentemente neste caso e ‘Um Sonho de Amor’ consegue ser um dos maiores exemplos ao lado de talvez ‘Direito de Amar’ (A Single Man), de Tom Ford de como fazer um filme fazendo o melhor uso de todos os aspectos da linguagem cinematográfica: roteiro, direção de arte, fotografia, design de som, trilha sonora, montagem e claro, direção. Guadagnino (e Ford também) sabem brilhantemente como orquestrar todos esses elementos sabendo como agenciar fantasticamente tudo isso enquanto dirigem. Como o próprio Gilles disse certa vez “o cinema não apenas apresenta imagens, ele as cerca com um mundo”.
O mundo de ‘Um Sonho de Amor’ é fisicamente a Milão dos dias atuais, mas também em outra instância é o eco de duas tradições que parecem cada vez mais em vias de uma ineficácia, o rompante da família socialmente estruturada ao longo das gerações com seus ritos e meios e a própria burguesia enquanto tema fílmico, sendo sua engrenagem rompida através do amor o flerte mais direto e desejado a cinematográfica de Luchino Visconti.
A alusão a um senso meticuloso de luxuosidade e detalhismo presente em todos os filmes de Visconti (lembremos dos objetos fiéis à época ou roupas guardadas dentro de gavetas em ‘O Leopardo’ mesmo que a câmera jamais chegasse a mostrar o interior desses móveis) reaparece no filme de Guadagnino além da já citada desestruturação do cerne familiar através de uma explosão apaixonada.
A burguesia milanesa e todo seu pilar histórico, o tradicionalismo das fábricas e indústrias como Pasolini bem demonstrou em ‘Teorema’ recebe aqui ares menos metafóricos e desconcertantes, porém a modificação é inerente em todos os casos. A sustentação de uma normatividade familiar e por extensão uma hetenormatividade (seja pelo explícito romance homossexual da filha e o indício bastante sutil e até mesmo questionável, quase imperceptível do filho) não resistem aos impulsos sentimentais e físicos. A superação pela mudança ou a necessidade de mudar é inclusive mencionada em determinado momento por um personagem de fora.
‘Um Sonho de Amor’ é um filme de construção, ou melhor, de arquitetura e ornamentos. Ali estará logo de início a orquestração ritmada por uma velocidade dos detalhes, das linhas, formas e espaços. Os planos irão dar o tom e cadência por essa engrenagem dos eventos que se acumulam, na concentração gradativa de emoções e eventos até culminar finalmente na explosão e sossego, este quase inacreditável, mas o filme em algum momento respira, até mesmo por começar a ponto de perder o fôlego.
Como numa casa em miniatura posta a brincar, a Villa Necchi, a dramaturgia simplesmente pode obedecer a ordenação dos móveis, adornos e pessoas, estas respondendo aos seus gestos e interações como ambiente e umas com as outras, com seus vestuários e tudo isso por conseqüência respondendo aos domínios da câmera. A decupagem acaba por se adequar a um cardápio arrojado de planos e detalhes visuais dos mais inspirados, nos quais inserts poéticos se mesclam belamente a movimentos de câmera de pura descrição suave, pequenas lampejos dourados de luz e cristalinos enquadramentos de exímio controle da arte de filmar.
Emma (Swinton) mudou-se da Rússia para a Itália ao conhecer e se apaixonar por Tancredi Recchi (Pippo Delbono) e assim naturalizou-se italiana. É inclusive impressionante o trabalho de Tilda ao aprender tanto o russo quanto a língua italiana especialmente para o papel demonstrando enorme desenvoltura e naturalidade. Tancredi é filho de Aleggra (Marisa Berenson, atriz de ‘Morte em Veneza’, novamente Visconti e também de ‘Barry Lyndon’, de Stanley Kubrick) Edoardo Recchi (Gabriele Ferzetti), dono de uma tradicional fábrica têxtil. Juntos o casal possuem três filhos, nos quais se destacam Elisabetta (Alba Rohrwacher) e Edoardo Jr. (Flavio Parenti).
Num determinado e habitual encontro familiar para comemoração do aniversário do patriarca queem vias de se aposentar decide transferir o comando da fábrica para seu filho e neto, também ocorre o resultado de uma corrida na qual Edo perdeu, ou empatou como chega a dizer, para seu amigo Antonio Biscaglia (Edoardo Gabbriellini), um talentoso chef de cozinha que na noite do jantar na residência dos Recchi resolve como gentileza levar um bolo feito por ele. Ao chegar à casa e ser recepcionado pelo amigo ele acaba também por conhecer Emma, sua mãe.
Daí em diante passado alguns meses Emma passará a ser testada por diversas manifestações aos sentidos e a sua consciência a respeito de sua vida, sua posição e satisfação pessoal tanto na relação com o marido quanto na estrutura familiar e social em que vive há tanto tempo. Inicialmente através do conhecimento ocasional de uma espécie de papel ou ‘carta’ escrita por sua filha Betta relatando a descoberta do amor através de uma relação com outra menina e o inevitável reencontro com Antonio já que ele e Edoardo resolvem ser sócios num restaurante que aquele deseja abrir numa região bucólica.
O desenrolar da trama não chega a ser surpreendente a não ser por um ou outro detalhe no desfecho de um importante personagem que pode parecer inesperado a grande maioria, porém o que reserva a protagonista é bastante previsível e nem por isso pouco impactante e merecedor de toda entrega. Isso tudo porque além das inegáveis qualidades técnicas já apontadas ‘Um Sonho de Amor’ triunfa principalmente pelo magnetismo de Tilda Swinton e toda força e delicadeza contidos em sua atuação.
Poucas vezes ela esteve tão feminina e plácida como se apresenta no começo do filme, com os cabelos mais compridos num loiro brilhante expressando puramente toda a doçura maternal, maravilhosamente impregnada de postura e firmeza para então ao longo do filme ampliar a humanidade de sua personagem dando a ela novos contornos e ímpetos até finalmente culminar na brutalidade emocionante e comovente de sua atitude de puro desapego em favor da paixão e do amor.
Como o título original já anuncia o existencialismo de um ser humano só cabe dentro da sua individual dimensão amorosa, quando viver e mais ainda ser só pode estar atrelado a uma sinceridade e uma atitude exterior, a crença e responsabilidade na exposição deste sentimento. A isso ‘Um Sonho de Amor’ se torna um grande exemplo, independente das opções ou gostos afetivos, sexuais, acima de todas as convenções principalmente morais, de que o mais importante é assumir aquilo se quer, aquilo que se é e principalmente, por extensão, aquilo se ama.
MATHEUS MARCO
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