Diga-me como chamas que eu não te direi quem és

O cineasta Philippe Garrel disse certa vez que fazer um filme é como fazer um filho e sua filmografia sempre refletiu bem esta afirmação criando toda uma genealogia familiar cinematográfica. Se Garrel realmente está certo em sua declaração, todo filme assim como qualquer ser dinâmico e independente (de seus pais, seu diretor) precisa de um nome para se constituir e ser rememorado ao longo do tempo e dos espaços.

A tarefa, aparentemente simples, de dar nome a um filme geralmente começa lá atrás durante ou até anteriormente a criação e escrita do próprio roteiro. Há aqueles cineastas que trabalham em cima de um projeto a partir do seu título, com este desencadeando toda a narrativa, visual e forma que o filme acabará tendo ao longo do desenvolvimento da idéia.

Ao contrário, a aparente grande maioria acaba por definir o título de um filme assim que sua estrutura esteja mais definida ou ainda quando todo o roteiro estiver concluído, o que de certa maneira parece natural numa lógica industrial de criação na qual o projeto acaba sofrendo inúmeras alterações fazendo com que o título inicialmente escolhido não caiba exatamente às ‘funções’ criativas e mercadológicas do final do processo. Seja partindo da partícula que guiará toda a construção desse universo fílmico ou chegando-se ao todo para então compreender a maior unidade criada, o nome de um filme ainda não estará livre de alterações.

Muitas vezes a filmagem acontece sob um título provisório que será definido futuramente, os chamados working titles e mesmo quando o filme já está no período da chamada pós-produção ele está passível de sofrer alterações, normalmente por conta dos produtores e estúdios.

Quando estas instâncias internas parecem preferir por não alterarem um título contido no projeto original do realizador, existem outras que podem e inevitavelmente acabam por modificá-lo. É o que costuma acontecer com os filmes estrangeiros cujos títulos são traduzidos na maioria das vezes de maneira não linear, ignorando muitas vezes as verdadeiras razões de ordem narrativa e estéticas que nortearam do início ao fim a escolha e permanência de um título específico.

Na maioria das vezes as traduções feitas pelas distribuidoras visam atrair um público maior, ainda mais quando seu poder é inferior ao de outras majors, ou seja, aos braços nacionais das matrizes dos grandes estúdios que tendem a trabalhar com títulos (nesse caso referindo-se aos próprios filmes e não apenas aos seus nomes) maiores cujo retorno financeiro dificilmente sofreria alterações por conta de um nome um tanto particular.

SÍNDROME DO A.K.A.

Os casos são inúmeros e a lista poderia render várias páginas, porém a cada semana pelo menos algum nome recebido por determinado filme acaba chamando a atenção por motivos dos mais diversos. Recentemente estreou após dois anos de atraso nos cinemas nacionais ‘Io Sono L´Amore’, de Luca Guadagnino que recebeu da Paris Filmes o título de ‘Um Sonho de Amor. A escolha que ainda procura preservar traços do original não faz jus a própria originalidade simples, porém expressiva daquela que foi pensada e que por isso mesmo reflete muito mais profundamente o estado inspirado que percorre todo o filme e principalmente as ações de sua protagonista.

Outro caso bastante contemporâneo e neste caso completamente equivocado é a tradução de ‘A Single Man’, filme de estréia de Tom Ford na direção cinematográfica. Aqui no Brasil ao contrário de todos os outros locais em que o filme foi lançado no mundo todo ele passou a se chamar ‘Direito de Amar’. A lembrança rasteira a uma antiga telenovela poderia por si só incomodar se não fosse a estratégia vergonhosa da distribuidora em procurar mascarar a verdadeira natureza do filme, revelando inclusive um receio em elucidar a trama homossexual contida na história. Isso fica ainda mais perceptível ao observar também a arte do pôster nacional que privilegia os atores Colin Fith e Julianne Moore fazendo com que a virtuosa produção de Ford seja recebida enquanto um típico melodrama.

Ruim para o filme, baseado num romance (não por acaso homônimo) de Christopher Isherwood, construído em detalhes virtuosos e coerentes com sua proposta, ruim também para o público que acaba sendo enganado em sua expectativa e experiência diante de uma obra. Neste caso, por exemplo, a alteração do nome ou a conservação ou tradução literal de seu título dificilmente atrairia ou afastaria o público já que a distribuição por si só infelizmente era pequena em comparação com outros filmes.

Há ainda a dança dos títulos fazendo com que eles acabem sendo reaproveitados em outras produções como aconteceu com a famosa série de terror ‘Scream’ que originalmente foi concebida para se chamar ‘Scary Movie’. A mudança acabou funcionando já que a máscara utilizada pelo assassino remetia diretamente ao famoso quadro expressionista de Edvard Munch. Dessa forma o título original foi reutilizado pela Dimension Films para dar nome à sátira conhecida aqui por ‘Todo Mundo em Pânico’. Aliás, o nome dado a esta série de filmes paródicos surgiu curiosamente através de uma promoção da distribuidora nacional, na época a Lumière, que pediu a internautas que enviassem suas sugestões. O trocadilho ao filme de Wes Craven pareceu oportuno até porque seu filme servia completamente de base ao surgimento da franquia de humor gratuito.

Nem mesmo os clássicos acabam saindo ilesos às alterações dos títulos que por incrível que pareça já fora muito mais acentuada, fazendo com que muitos filmes acabassem sendo imortalizados justamente pelo imaginário e tempo pelo qual foram chamados de determinado modo como é o caso de ‘Bonequinha de Luxo’, de Blake Edwards que originalmente é intitulado ‘Breakfast at Tiffany´s’ ou ‘A Noviça Rebelde’ ou ‘The Sound of Music’. No filme de Edwards caso a famosa joalheria perdesse seu sentido em terras nacionais por conta de referências específicas que poderiam escapar ao público poderia muito bem ter se optado, por exemplo, pela tradução espanhola ‘Desayuno con Diamantes’ que procura conservar a idéia contida no original. ‘Bonequinha de Luxo’ acaba assim por demonstrar a estratégia mais comum entre as distribuidoras, bem ou mal intencionadas, de procurar sintetizar muitas vezes de forma superficial o tema ou idéia principal, tirando em muitos casos o charme, mistério e ambigüidade presentes nos títulos originais.

Há também casos curiosos como aqueles que envolvem alguns filmes de Alfred Hitchcock. Durante algum tempo inclusive circulou por aí uma piada infame a respeito de ‘Psicose’, cuja tradução portuguesa teria sido ‘O Filho Que Era a Mãe’, quando na verdade para os nossos colonizadores o filme se chama simplesmente ‘Psico’. Brincadeiras a parte existem as curiosas traduções mundo afora de ‘Vertigo’, estas sim reais e por isso mesmo: mais absurdas. Fica difícil entender a razão em determinados casos para simplesmente não se manter a tradução literal como acontece neste filme no qual logo nos créditos iniciais tudo é objetivamente coerente com sua proposta e título. Mas não, é preciso muita criatividade e ‘Vertigo’ se torna o já conhecido ‘Um Corpo Que Cai’ no Brasil, na Espanha tornou-se ‘De Entre los Muertos’ e em Portugual se torna simplesmente o inacreditável ‘A Mulher Que Viveu Duas Vezes’. Por outro lado os portugueses se saíram melhor na tradução de ‘Rope’, também de Hitchcock que aqui virou ‘Festim Diabólico’ enquanto lá é apenas ‘A Corda’.

Nem mesmos os cânones europeus da sétima arte escaparam de traduções desajeitadas e problemas lingüísticos. ‘Blow Up’, obra prima de Michelangelo Antonioni que possui um dos títulos mais interessantes para um filme, pelo menos para mim, e que condiz perfeitamente com sua trama, tema e também ao clima e atmosfera presentes na película foi terrivelmente traduzido como ‘Depois Daquele Beijo’, há ainda variações tão ruins quanto como a espanhol ‘Deseo de Una Mañana de Verano’ ou o desinteressante ‘Histórias de um Fotógrafo’ em Portugal.

Outro que sempre sofreu alterações das mais diversas com seus títulos foi Godard, apesar dele possivelmente ter muito mais se divertido do que se preocupado com as traduções de seus filmes ao redor do mundo. Logo no seu primeiro filme ‘À Bout de Souffle’ as mudanças já vieram fazendo com que ele chegasse e se imortalizasse enquanto ‘Acossado’ ou ‘O Acossado’ para os portugueses. Melhor do que isso em ordem crescente seriam as traduções espanhola, italiana e americana respectivamente ‘Al Final de La Escapada’, ‘Fino All´ultimo Respiro’ e ‘Breathless’.

Existe ainda o filme ‘Pierrot le Fou’ que vai de ‘Pedro o Louco’ lá em Portugal ao bizarro ‘O Demônio das Onze Horas’ aqui no Brasil ou sua variante italiana ‘Il Bandito Delle Ore Undici’, provavelmente advindos do suposto romance ao qual o filme se baseia, por mais incrível e surreal que possa parecer uma adaptação godardiana, ainda mais no caso de ‘Pierror le Fou’ que nem roteiro possuía, apenas anotações e registros.

Ainda falando de Godard há mais dois interessantes casos envolvendo títulos. Uma delas é ‘Une Femme Mariée’ que originalmente por vontade do diretor possuía o artigo definido ‘a’ e não ‘uma’ em seu título, fazendo com que a idéia contida sobre esta tal mulher casada fosse muito mais generalizante e conceitual. Infelizmente a imposição, nesse caso possivelmente até enquanto censura, prevaleceu e o filme teve seu nome alterado. Já ‘Sauve Qui Peaut (La Vie)’ que aqui foi milagrosamente traduzido como ‘Salve-se Quem Puder (A Vida)’ transformou-se em ‘Slow Motion’ na Inglaterra e ‘Every Man for Himself’ nos Estados Unidos. Em tempo a Senses of Cinema publicou recentemente uma matéria a respeito das controversas traduções e legendas presentes em ‘Filme Socialismo’, além de apresentar outros casos lingüísticos na obra de Godard.

A lista poderia continuar sem interrupção nos mais diversos gêneros e épocas, indo de ocasionais subtítulos para dar conta da estranha ou complexidade como nos ótimos ‘Persona’ ou ‘Persona – Quando Duas Mulheres Pecam’, de Bergman ou ‘I <3 Huckabees’ ou ‘Huckabees – A Vida é Uma Comédia’, de David O´Russell. Há ainda os pleonasmos como em ‘O Pequeno Stuart Little’ ou outras modificações sem sentido como a de ‘Non ma Fille, tu n’iras pas Danser’, de Christophe Honoré que se transformou em ‘Making Plans for Lena’ para os americanos.

No mais fica o singelo apelo aos distribuidores para que repensem melhor suas traduções ao lançarem seus filmes, tendo em vista que a conservação do título original pode muitas vezes estimular ainda mais os espectadores a desejarem assistir determinada obra, justamente pela singularidade de seu nome.
Retornando a Garrel fica uma bela definição de Bernard Eisenschitz ao afirmar que os títulos de seus filmes, além de funcionarem como detonadores são igualmente etiquetas ou definições.

MATHEUS MARCO
matheusmarco@brrun.com

Fotos: Divulgação