Cinética dos Manequins

O quadro se interna e se mumifica na exposição absoluta, tudo a partir de um desfile vaidoso, entre o tédio cotidiano e o delírio estrelar de corpos inanimados em sua peculiar beleza, vitrificados pelo tempo/duração, catatonizados, aspirados e sexualizados em espera e fulgurância, postos também plenos de melancolia, êxtase e dança: pose.

O cinema de Andy Warhol sempre construiu uma espécie de materialização do olhar no limite do desapego, paradoxal efeito da captação da coisa enquanto objeto/matéria que de tanto submetido a esta visão, sugado pelo olhar fetichista da câmera, desenvolve justamente uma naturalidade que o faz escapar ao rígido quadro criado.

É notório o fato de como as pessoas, público obcecado, podem se desvirtuar (e desvirtualizar-se) durante alguns de seus filmes e começarem descontroladamente a conversar num teatro de assuntos, desenvolvidos em reflexo da afasia das imagens na tela, tendo o espaço sombrio e controlado do espectador atacado pelo movimento inanimado, do filme enquanto quadro estático em projeção dinâmica.

Idéia esta que lembraria muito o efeito (real) descrito por Leonardo Sette a propósito de uma exibição deliberadamente caótica de, não por acaso, ‘Week End’ (1967), Godard, na qual após vinte minutos de exibição, cenas inteiras começavam a se repetir transtornando a posição segura e passiva do espectador em relação às imagens, algo que num filme apocalíptico como o em questão só fazia aumentar o descontrole na sala, com o público incitado a um ritual de gritos que transformou a sessão numa bizarra catarse coletiva.

Berthet diz muito bem: “Se considerarmos a conversa como o conjunto do que vem a ser dito, que sujeito policéfalo, e quase meio-louco, poderemos imaginar para proferi-la?”.

Em Warhol tal efeito é completamente passível de acontecer, tendo como diferencial o fato de, ao contrário da exibição especial de ‘Week End’ temos os filmes originalmente moldados a essa liberação da fala e do corpo do espectador condicionado a uma duração extenuante de poses. A dilatação do plano, uma visão que tende ao afrouxamento, curiosamente por vir de uma aparente rigidez do mesmo; fenômeno da paisagem no qual de tão visto as coisas se tornam demasiadamente absorvidas e a ‘vida’ começa a transcorrer mais facilmente entre(dentro) (d)o plano e entre a tela e o espectador.

Warhol possui uma grande primeira fase composta pelos célebres longos ensaios onde a materialidade e a duração encontram o alto grau da contemplação, como é o caso de ‘Kiss’, ‘Sleep’, ‘Blow Job’, ‘Eat’ ambos de 1963 e o monumento cinematográfico ‘Empire’, de 1964. É como se em algumas de suas pinturas Warhol expusesse a variação de movimento ou a ilusão de um descompasso das formas numa espécie de sobre impressões de linhas e formas, enquanto que em seus primeiros filmes utilizando-se do movimento da captação cinematográfica faz justamente o contrário ao transformá-los em uma grande estátua viva e pulsante, envolvida pelo ar e manifestações climáticas, todas intempéries temporais relacionadas inclusive à própria duração das coisas, desde luzes artificiais no caso de ‘Empire’ ao gozo esvaziado, fora de quadro de ‘Blow Job’, grandes artefatos do tempo, não apenas pelas horas da duração, mas pelo registro humano da presença num exercício forçoso do olhar.

Em 1965, ano em que a Sony comercializa o primeiro gravador de vídeo, o Portapak Norelco e apresenta as primeiras cassetes de vídeo numa festa em Nova York, é oferecido a Warhol um gravador slant-trackvideo nos primórdios da utilização videográfica. Assim ele filma em 16mm ‘Vinyl’, filme fetichista como poucos que ao lado de ‘Scorpio Rising’ (1964), de Kenneth Anger trazem um interessante observatório homoerótico de alguns signos.

Tal fetichismo na imagem que já existia nos longos ensaios anteriores já se faz também presente em outros filmes de caráter mais explicitamente narrativo como é o caso de ‘My Hustler’, também de 1965.

No filme Paul America interpreta um garoto de programa transbordando um natural charme e excitação tranqüila, quase ao ponto do blasé, para um homem mais maduro e rico que mora no litoral de Fire Island e o contratou, sendo também objeto desejante de michê além de uma menina que mora nas redondezas feita por Genevieve Charbon. Os planos de Paul America deitado na areia da praia são de um voyeurismo único, já que ele é visto pelos personagens através de um binóculo na varanda da casa, expressivo e libidinoso envolto de comentários e observações a respeito da sexualidade, do próprio serviço da prostituição masculina numa maneira não vista em filmes da época.

‘Vinyl’ traz como curiosidade o fato de ser considerado a primeira adaptação para o cinema de ‘A Clockwork Orange’, de Anthony Burgess, que em 1971 se transformaria no homônimo filme de Stanley Kubrick. São inegáveis as diferenças entre ambos os filmes, somente pelo fato das autorias tão particulares, mas é interessante observar o dado relativo ao corpo.

Em Kubrick, Alex e seus amigos comportam a tal ultraviolence em suas atitudes e posturas para então finalmente ele ser revolvido pelo sistema e ser drasticamente transformado por essa experiência. Em Warhol, Victor (The Victor), feito não por acaso por Gerard Malanga, uma das superstars masculinas mais próximas a Andy, parece oscilar muito mais visivelmente entre uma agressividade performática e uma ingenuidade juvenil, sendo o filme todo um tour de force que também acabar por oscilar entre a representação ensaiada e a improvisação possível.

Victor e o próprio filme passam pelo processo dos acontecimentos sem sofrerem elipses ou menos ainda deixando o espaço cênico fazendo com que a narrativa e transformação do personagem aconteçam num grande plano seqüência. Ao lado dele há os outros personagens de ‘Vinyl’, rigorosamente dispostos no plano como em um ensaio fotográfico ou visões de um museu underground, tendo como destaque a participação da icônica superstar Edie Sedgwick, não por acaso o único elemento fisicamente feminino presente, que ajeitada à direita do quadro sentada em uma espécie de caixa ou baú parece absorta na diegese e ao mesmo tempo solta aos desenvolvimentos da trama respondendo com naturalidade às atitudes mesmo de violência entre os personagens quando estes se aproximam dela ou quando bebe ou fuma, dança e ri para o extracampo.

Todos esses movimentos fazem como se aquilo realmente fosse um prolongamento das existências ficcionais e reais, não existindo separação entre os corpos ensaiados e os naturais. Aliás, com relação a dança, ‘Vinyl’ possui dois momentos musicais mais destacados, um é logo na primeira parte de filme na qual inesperadamente começa a tocar diegeticamente sem qualquer aparente justificação explicativa ‘Nowhere to Run’, de Martha and The Vandellas.

Música que retorna a tocar logo que termina: repetição e automatismo sonora e corpóreo, ao passo que apenas Edie e Malanga dançam interrompendo a progressão narrativa da ação dita principal, ela com uma espontânea graciosidade meio desinteressada e ele com leve afetação numa performance narcísica sendo observado com certo erotismo e riso por Tosh Carillo, o policial, sentado nesta primeira parte do filme.

Outro momento musical acontece mais próximo do final e nele propriamente dito com ‘Tired of Waiting for You’, do The Kinks, canção que é curiosa por nos remeter justamente a esta afasia física do cinema underground e particularmente ao cinema de Warhol.

A propósito do ‘cinema dos corpos’ que comportaria também Cassavetes, Ackerman, Garrel, Morrissey, o próprio Godard, Doillon, Gilles Deleuze mostra o processo no qual ora o procedimento monta a câmera sobre o corpo cotidiano como os tais ensaios de Warhol, ora, ao contrário, esse cinema do corpo monta uma cerimônia, assume um aspecto iniciático e litúrgico, “convocando as forças metálicas e líquidas de um corpo sagrado, até o horror ou a revulsão”. A respeito destes corpos cotidianos é a cerimônia que pode nunca ocorrer, do contínuo que não se completa e se esvai a medida que sempre pode inflar de posição e permanência como nos filmes de Warhol ao lado de Morrissey da trilogia com Joe Dallessandro.

Fazendo dos marginais as personagens de seu cinema, o underground concedia os meios para uma cotidianidade que não cessava de transcorrer, nos preparativos de uma cerimônia estereotipada: drogas, prostituição, travestis. As atitudes e posturas entram nessa lenta teatralização cotidiana do corpo, com seus cansaços e esperas, mas também com os momentos de calma e excitação.

‘Vinyl’ transcorre neste campo de variações, do primeiríssimo plano abertura com o rosto de Malanga até o plano aberto tendo todo o seu corpo em estado de exercício físico e exposição masculina passando pelo monólogo inspirado, as afetações e inversões que culminam em sua exposição e exploração física num corpo enfraquecido e imantado por essa fraqueza no toque e proximidade com outros.

É importante ressaltar que ao fundo da ação principal há uma série de sutis práticas masoquistas que acontecem com uma naturalidade impressionante quase como eventos independentes, o que de certa forma são e não são. E será Victor que após a passagem entre aglutinador teórico da violência e do caos depois vítima e objeto de dor e prazer quem apresentará esses signos masoquistas que chegam ao primeiro plano como um ritual lento que vai das suas roupas sendo rasgadas e seu corpo exposto até a abjuração física dos esquemas motores quando ele incapaz de reagir ao todo que o comporta.

Submetido a esta mumificação negra do corpo exposto, ele acaba sendo observado calmamente pelos outros personagens e por uma Edie ainda mais desinteressada e séria. A excitação de Victor resolve em si mesmo e naqueles que a cometem especialmente a J. D. McDermott como o doutor que, vestido como lembraria o Alex do filme de Kubrick, o incita a toda série dolorosa de efeitos.

Ao final temos os créditos sendo falados por uma voz fora de quadro. Acabado ritual de punição e excitação, a máscara é retirada e ele desamarrado da cadeira, solto no ambiente como um corpo bêbado, com os cabelos bagunçados e o peito a mostra, o olhar tonto e cambaleante de frenesi sonolento.

Ajoelhado frente a câmera e cortado de seu enquadramento para depois já posto de pé abraçando McDermott de forma apegada e sexual, eles dançam como um casal descompromissado, um aproveitando-se do corpo deslocado e exposto do outro, tocando com a tal agressividade homoerótica enquanto o outro deixando-se ser erguido e segurado, se apresenta como um físico exposto, posado e abandonado a todo trabalho carnal dos personagens/câmera/cineasta, depositados sobre ele para modificar a sua pose originária, sua velocidade imagética que vai do repouso original ao festim coletivo dos corpos.

MATHEUS MARCO
matheusmarco@brrun.com

Fotos: Divulgação