La Nuit
“Caresse l’horizon de la nuit, cherche le coeur de jais que l’aube recouvre de chair.
Il mettrait dans tes yeux des pensées innocentes, des flammes, des ailes et des verdures que le soleil n’inventa pas.
Ce n’est pas la nuit qui te manque, mais sa puissance.”
Paul Éluard ‘Capitale de la Douleur’, 1926
A idéia constitutiva de uma conspiração, o elemento invisível que permeia, persegue e atenta com a naturalidade da vida sempre esteve presente no imaginário e na própria dita realidade vivida. Teorias e desaparecimentos sempre foram mote e processo tanto para a vida quanto a criação de uma vida ou de várias.
Dominar o outro. Mais eficaz do que feri-lo é causar uma situação de impressionante temor, isso quando o sistema se torna visível, ganha uma matéria óptica, ou seja, pode como uma imagem causar os efeitos de horror e encantamento, como bem Paul Virílio apontou com relação ao cinema e a guerra. O que é o cinema além da mera repetição da aparência visível do mundo? O real não é impossível, ele é cada vez mais artificial.
Não existe guerra, entre mundos ou homens, sem representação ou mesmo arma sofisticada sem mistificação psicológica, pois, antes de instrumentos de destruição e privação de uma individualidade pessoal ou coletiva, eles são instrumentos de percepção, ou seja, estimulantes que provocam fenômenos químicos e neurológicos sobre órgãos do sentido e do sistema nervoso central, afetando as reações e a identificação e diferenciação dos objetos e da realidade percebida.
Enquanto invisível é a suspensão de um fora, uma ameaça exterior que gerará a dúvida, a confusão e um outro efeito tão poderoso quanto, aquele falado há pouco a respeito da insegurança sobre o que virá capturar, nossa sobrevivência ou pior, nosso olhar.
O cinema, assim como a literatura e tantos outros, sempre se utilizou só com especial diferencial imagético deste mecanismo da captura. Ele entra para as categorias das armas a partir do momento em que está apto a criar a surpresa técnica ou psicológica. A sala escura principalmente como espaço privilegiado do grande fascínio pela vivencia paralela de um acontecimento ou em casos menos narrativos de uma imanência estática que se movimenta.
À luz do projetor todo cataclismo de uma explosão, um atentado ou o delírio de uma espaçonave se misturam no escuro de uma apreensão real, mesmo que tudo se virtualize a partir do momento em que a primeira piscada natural do olho separa o momento anterior à projeção e o início de um outro mundo.
A criação deste outro mundo, idealizado ou destruidor em seu exotismo de perigo, passa fortemente no chamado cinema de horror e ficção científica. Acima das classificações e rótulos, tais gêneros ou segmentos característicos puderam ao longo das décadas estabelecer um panorama de antecipação e gerar o frenesi as vezes mais forte do que outras de uma realidade prestes a chocar-se contra a ordem estabelecida.
O mote de muitos desses filmes é a idéia de que não estamos sozinhos, há algo na sala escura, a luz só ilumina a tela. O estranho, a desfamiliarização, aquilo que vem de fora ou mesmo saber o que é, mas não querer ver. E no fundo o que somente se quer é ver. A visão incontrolável, aquilo que devia estar escondido, mas foi exposto. Manter a distancia, pois a freqüência normaliza. Quanto mais se olhar para algo mais a chance de se familiarizar com ele (ou então não se familiarizar nunca). O estranho como a figura que se repete e que não deveria se repetir.
Há algo a irromper a normalidade e a tranqüilidade, o segmento natural e previsível. Para isso há dois caminhos, um sendo o descontrole da ordem e o caos estabelecido por forças desconhecidas como a manutenção da mesma e a condução a um estado de crença invariável, o controle.
Não basta apenas manter uma onipresença das ações e pensamentos, é preciso também atuar tanto abaixo quanto acima dos processos cotidianos, já que estão entre o dentro e fora, fazem parte de um cotidiano. O desejo é da ordem da produção e aplicar o desenvolvimento deste desejo em controlar antes de abater o outro, mas seduzi-lo com esta força é a grande especificidade daquele que de alguma forma manipula as idas e vindas.
Tanto o perigo de fora quanto o de dentro está já envolvido em nosso mecanismo de vida, podendo ser os estatutos e figuras físicas governamentais, os poderes econômicos, as graciosidades da propaganda ou mesmo nossas crianças como num dos filmes em questão.
O que há por trás disso tudo é a geração de uma agonia e a ocupação das pessoas, até a instalação das novas forças que se anunciam. São as sociedades de controle que substituem as sociedade disciplinares. Não há mais um homem confinado, mas sim endividado com as divagações publicitárias, as operações de mercado ou mesmo as relações com o ‘outro’. Num regime de controle nunca se termina nada.
Antes mesmo das sociedades de controle terem efetivamente se organizado, as formas de delinqüência ou de resistência também aparecem como um grau de descontrole social perante estas formas de dominação, a pirataria ou os vírus de computador que cada vez mais permeiam filmes de ficção científica com seus aparatos tecnológicos envolvendo grandes empresas e organizações conspiracionais, deste ou de outro mundo.
Piratarias ou vírus eletrônicos que substituíram as greves e o que no século XIX se chamava de ‘sabotagem’, emperrando a máquina (pensemos em ‘Metropolis’, de Fritz Lang). Como diria Deleuze é preciso um desvio já que criar sempre foi coisa distinta de comunicar. O importante talvez venha a ser criar vacúolos de não-comunicação, interruptores (acende-apaga), para escapar ao controle.
Nas sociedades de controle o essencial não é mais uma assinatura e nem mesmo um número (as inscrições numéricas nos pescoços dos habitantes de ‘Alphaville’), mas uma cifra, uma senha. A linguagem numérica do controle é feita de cifras, que marcam o acesso à informação ou a rejeição. Um passo em direção a um empreendimento cada vez mais eletrônico e espacial, uma desmaterialização do corpo em direção a virtualidade.
O homem da disciplina era um produtor descontínuo de energia, mas o homem do controle é antes ondulatório, funcionando em órbita, num feixe contínuo. A fábrica de Lang cedeu lugar à empresa e aos andares virtuais (‘The Thirteenth Floor’, de Josef Rusnak). A família, a escola, o exército, a fábrica não são mais espaços analógicos distintos que convergem para um proprietário, Estado ou potencia privada, mas são agora figuras cifradas, deformáveis e transformáveis, de uma mesma empresa que só tem gerentes.
O marketing é agora o instrumento de controle social e forma a raça impudente de nossos senhores. E os homens de um modo geral pobres demais para a dívida, numerosos demais para o confinamento, o controle não só tem que enfrentar a dissipação das fronteiras, mas também a explosão dos guetos e favelas. Em ‘Matrix’, de Andy e Lana Wachowski somos levados ao conhecimento de uma nova realidade a partir de outros canais de transferência física, a manutenção de avatares constituintes dessa sobrevivência, pois o mundo anterior não existe mais. Aquela realidade não é mais possível, admirável mundo novo.
Na prática, com talvez certo exagero, não haveria necessidade de ficção cientifica para se conceber um mecanismo de controle que dê, a cada instante, a posição de um elemento no espaço aberto, animal numa reserva e de um homem numa empresa ou em seus vínculos sociais. Aliás, é importante pensar na importância desta sociabilidade ao controle ou mesmo além dele.
Mesmo na sala de cinema é raros casos há somente uma pessoa no espaço, há sempre um contato e uma troca mesmo que muda, silenciosa, mantida no acordo obscuro da dilatação temporal. Um homem não vive completamente sozinho, questão antiga e talvez já superada, ser social, sendo que qualquer variação drástica em qualquer individualidade mais cedo ou mais tarde virá a se espalhar a outros homens.
Em ‘Village of the Damned’, de Wolf Rilla quando um homem é encontrado abatido no meio de uma estrada após algum acidente de razões incomuns rapidamente outros surgem, entre autoridades e locais através da curiosidade ou resolução do acontecido. Uma sensação de medo ou pânico, desconhecimento e inaptidão física e psicológica de reagir a algo que pode nos ferir ou afetar se transfere de forma invisível muito rapidamente entre as pessoas que estão próximas ou juntas. Ainda em relação a ‘Village of the Damned’ é interessante observar a relação da dominação a algo tratado logo no início que é o fator visual.
Há uma relação emissor receptor, mesmo que discutível neste caso, propriamente humana, diferente da emissão e recepção subliminar vista em ‘They Live’, de John Carpenter que curiosamente em 1995 viria a dirigir um remake de ‘Village’. O fato é que no filme de Rilla o que gera o perigo e a morte é primeiro um elemento de aparente tranqüilidade, inofensivo como crianças de aparência especial oriundas de um baby boom com síncope generalizada numa área específica e segundo a perda da existência provocada diretamente pelo contato visual. São os olhos que são atingidos primeiros, não menos por outros olhos que expressam a vertigem ontológica (‘Vertigo’, de Alfred Hitchcock e mais ainda ‘Anémic Cinéma’, de Marcel Duchamp).
A captação do olhar pelo encantamento de um estado de percepção alterada, o sinal das luzes, que podem indicar tanto um perigo iminente, as luminescências vermelhas de alerta, como causar a fascinação de uma interioridade dançante como os coloridos raios noturnos. A luz que pisca ou chama, convida como um sortilégio de esquecimento e susto social de horror como se pode observar em ‘O 5º Poder’, de Alberto Pieralisi e ‘Alphaville, une étrange aventure de Lemmy Caution’, de Godard. Em ambos os filmes há um sinal emitido por um círculo luminoso que pontua não só a narrativa, mas causa um sintoma dentro do próprio acontecimento, enquanto filme, imagens sobre o espectador e perigo lúdico sobre os personagens. A luz redonda que pertence, como todos os elementos perturbadores à série dos simulacros, dos interstícios, das rupturas, dos vazios, etc. O aparecer-desaparecer, o mostrar-esconder é próprio dos elementos perturbadores, sejam eles imagéticos ou sonoros.
E a perturbação é o que trará o as coordenadas para os estados físicos e mentais dos que estão abaixo dela, em ‘O 5º Poder’ ela é discreta dentro da sala de comandos, visível a nós e aqueles que lá comandam. Não por acaso em ‘2001: A Space Odyssey’, Stanley Kubrick faz de HAL 9000 uma luz vermelha a emitir. Em ‘Alphaville’ ela constitui quase um leitmotiv que vai do poema Paul Eluard a toda significação do pensamento de Alpha 60. Lá o controle que acaba com o vocabulário e o reordena para ao final desmontar as verticalidades dos habitantes, todos colados as paredes ou tontos em corredores e ruas.
O olhar nunca é ingênuo, há quem diga o quanto ele determina a existência das coisas, ‘vejo, logo existe’ e a crença na certeza da imagem visual. Proibir um olhar ou direciona-lo de maneira mais ou menos explícita, objetiva sempre foi um mecanismo do controle. Não por acaso em ‘Fahrenheit 451’, de Truffaut a leitura é abolida, os livros são queimados e todo o conhecimento intelectual, poético e narrativo é destituído da civilização, sobrando enquanto resistência o deslocamento da imagem visual para a a imagem sonoro, retorno ao mecanismo anterior da fala, os cantos e histórias narrados oralmente, o poder da escuta, menos dirigido.
Não se trata aqui de uma superioridade da imagem visual à imagem sonora, apenas de uma certa supremacia do visual ao sonoro. Um exemplo é pensar na categoria da voz in e off no cinema, sempre tomando como referencial o visual, categorizando um corpo que está dentro ou fora de quadro, visto ou não visto ou ainda sincado ou não em seus lábios. Em ‘Fahrenheit 451’ os bombeiros vão destruir, literalmente queimar, todo e qualquer sinal da leitura, as palavras obsoletas. Em ‘Alphaville’ havia algo parecido na luta da poesia sobre a morte, na ‘capital da dor’, os dicionários são chamados de bíblia e algumas palavras desaparecem, são trocadas por outras. A realidade é complicada demais para a transmissão oral, já diria Alpha 60 no início do filme. Lógica do desaparecimento. Se algo não é visível, ele simplesmente não existe.
Estando aptos a olhar, estamos também destinados a esta organização dos sinais, por todos os lados e direções. Na pacata Midwich o estranhamento acerca daquelas crianças não vem apenas pela coincidência de seus nascimentos, mas porque há um fator visual de diferenciação. Não é só a exacerbada inteligência, mas o modo como são vistos pelos outros habitantes. Logo demarcada essa diferenciação o conflito se instaura, estamos diante de um perigo observacional, olho que tudo vê, apenas Mabuse, mas também Sodoma e Gomorra e o olhar petrificado.
Porém nem sempre aquele que olha é ao mesmo tempo olhado. É o caso de ‘They Live’, de Carpenter no qual é preciso esconder os olhos para então poder ver o que acontece, num filme onde a todo o momento estamos lidando com a superfície da aparição e do esconderijo. O aparecer-desaparecer, o mostrar-esconder perturbador, as luzes no filme de Godard aqui dá lugar a uma outra troca. O jogo do esconde-esconde se dá num nível ainda mais discreto, é preciso de um entre dois para se chegar ao objeto da visão, um anteparo para se ver; uma tela.
Em ‘They Live’ saímos da pequena cidade e estamos dentro do fluxo ininterrupto das informações e seduções caóticas da chamada vida moderna. Instaurada uma situação de desconfiança logo seremos levados a descoberta de uma caixa com óculos, retina obscura, às vezes é preciso esconder para mostrar, ir para a sala escura, com muita luz nada se vê. Tais óculos escuros quando colocados apresentam uma nova visão de mundo, incluindo fortemente as pessoas e as propagandas. Sem este aparato da visão não seria possível perceber que alguns habitantes da metrópole apesar de aparentemente se vestirem como senhoras que vão ao supermercado ou executivos bem arrumados em seus trajes são na verdade uma espécie de caveiras robóticas de outro planeta.
Metáfora interessante para outro elemento tratado no filme que são as mensagens subliminares, algo que em algum sentido físico existe, está ali, mas não é visto ou as vezes não pode ser visto, seja por faltar uma apuro de olhar maior e uma percepção mais aguçadas dos sentidos ou mesmo condições técnicas de identificação no caso de imagens rápidas demais para ser codificadas que passam entre outras imagens com um tempo de apreensão maior. No caso do filme o necessário são os mesmos óculos, além de descortinarem a verdadeira natureza dos homens e mulheres que socialmente nos relacionamos, explícita o vulgar imperativo dos letreiros publicitários, das logomarcas e nomes de estabelecimentos, rótulos de produtos e até mesmo o conteúdo de jornais e revistas, algo que Marcelo Masagão fez de maneira mais conceitual em ‘1,99 – Um Supermercado Que Vende Palavras’. Mais do que a coisa em si o que mais importa e vale é como ela é vista, a tentação da boa aparência, seja a roupagem humana das caveiras robôs alienígenas ou os rótulos e promessas de um bom lifestyle na publicidade, faz do olhar a grande vitrine para a entrada e saída do controle. Não há necessidade de grandes idéias conspiratórias para saber o quanto somos invariavelmente influenciados por normas, estilos e direcionamentos comportamentais.
Isso ainda falando de classes intelectuais, letradas e de bom nível crítico com relação aos meios e a mídia, o que faz com que este sintoma aumente em classes menos favorecidas. A fala de um casal social e economicamente desfavorecido em ‘Beyond Citizen Kane’ sobre a crença na verdade a partir do que é vinculado no Jornal Nacional, da Rede Globo, continua a existir ainda hoje.
A partir disso ‘O 5º Poder’ consegue ser um grande exemplo desta dominação através das mídias, o fenômeno de contemplação das altas torres e os oferecimentos da modernidade que sempre espreitaram o imaginário das pessoas. As mesmas antenas que desafiam o espaço urbano com suas freqüências ininterruptamente são as mesmas que podemos encontrar em algumas naves espaciais, salas conspiratórias e até mesmo na vinheta da RKO Radio Pictures, ironicamente de ‘Citizen Kane’, de Welles. Histórias do cinema. Do cinema.
O controle da informação e das imagens é o grande poder que em prática de subliminar não possui nada. É interessante observar a ironia comparativa a ‘They Live’ com o ressurgimento da tecnologia 3D que neste arsenal do espetáculo se utiliza da pirotecnia visual para reunir e atrair, consumir cada vez mais.
É preciso o novo anteparo para poder ver este novo mundo que se desabrocha diante de nós. Olhos cansados, mas que piscam coloridos com a fascinação. A vertigem da tela, dos personagens passou para o lado do espectador. Inofensivos, eles não causarão mal à imagem.
MATHEUS MARCO
matheusmarco@brrun.com
Fotos: Divulgação