“Un jour comme un autre
Il viendra vers moi
Me dire ‘je t’aime Anna, Anna’, Anna
Ce jour-là tout changera”
‘Um jour comme um autre”, Anna Karina
E o Cinema criou a Star
É de costume atribuir, grosso modo, o surgimento do primeiro plano a Griffith, por muitos considerado o pai da gramática cinematográfica clássica, aquela responsável pela imersão e invisibilidade da própria montagem dentro de uma narrativa fluída. Mas o que será que fez Mr. Griffith a pensar em colocar a câmera mais próxima de seus atores? Provavelmente estava a procura de outra coisa que agora chamamos de outro modo, algo que não filmava apenas as coisas, mas sim as relações entre elas. Talvez não quisesse apenas ver alguém mais de perto, mas unir uma coisa vista de longe com outra vista de perto. Porém mais tarde o cinema falado mostraria que a invenção do close foi responsável certamente pelo aparecimento da estrela.
Rostos como o de Mary Pickford e Lillian Gish ficariam imortalizados ainda nesta época trazendo o deslumbramento da face em tela grande naquilo que ela pode ter de fascínio e beleza (como depois seriam as imagens de Greta Garbo, Marlene Dietrich e Rita Hayworth) como também pela assustadora força de uma expressão dimensionada (como Tarantino soube ilustrar com o rosto de Melanie Laurent monstruosamente exibido literalmente na tela em ‘Bastardos Inglórios’ ou o épico da rostidade ‘A Paixão de Joana D´Arc’, de Dreyer na maior entrega de uma atriz, Maria Falconetti, a um personagem).
A tela enquanto receptáculo de toda uma constelação idealizada, o espelho retangular que em vez de refletir objetivamente aqueles que ali estão, projeta a mesma luz que o ilumina, carregado de sonhos e figuras fantasmagóricas de extremo vigor e beleza. O close de um rosto ou por extensão física o plano de um corpo, mantidos entre dois pólos, fazer com que esta imagem reflita a luz ou, ao contrário, acentue suas sombras até mergulhá-lo em uma obscuridade de encanto e mistério a exemplo da magia luminosa experimentada por Clouzot em Romy Schneider nos screen tests de ‘L´Enfer’.
Já a gloriosa linhagem européia das atrizes desenvolveu ao longo do tempo a criação das musas cinematográficas. A elas era destinado o poder de motivar os cineastas, muitas vezes seus companheiros afetivos e sexuais, a terem as inspirações para seus filmes e mais evidentemente aos seus planos. Casos associativos entre diretores e atrizes musas são vários como, por exemplo, Fellini e Giulietta Masina, Roger Vadim com Jane Fonda e Brigitte Bardot, Jacques Demy e Catherine Deneuve, Antonioni e Monica Vitti, a própria Dietrich com Josef von Sternberg ou ainda Jean Luc Godard com Anna Karina (e depois futuramente com Anne Wiazemsky e Anne Marie Miéville).
Com Godard Anna Karina ou Hanna Karin Blarke Bayer foi também Angela (Uma Mulher é Uma Mulher), Nana Kleinfrankenheim (Viver a Vida), Verônica Dreyer (O Pequeno Soldado), Odile (Band a Part), Natacha von Braun (Alphaville), Marianne Renoir (Pierrot le Fou) e Paula Nelson (Made in USA).
Apaixonado pela perfeição da imagem de Karina após vê-la num comercial de sabonetes Jean Luc desejou escala-la para uma cena em seu primeiro filme ‘Acossado’. Anna não aceitou o convite, pois a tomada exigiria dela mostrar muito do seu corpo. Porém o diretor insistiu e a partir de seu segundo filme a atriz faria parte de seus filmes mais icônicos da chamada por muitos ‘fase Karinna’ correspondente aos anos sessenta.
Em determinada cena de ‘Uma Mulher é Uma Mulher’, aquele que é o grande filme homenagem de Godard ao technicolor e aos musicais, filmado em formato scope e também reverenciando Lubitsch com o sobrenome de um personagem, Angela (Karinna) e Alfred (Jean Paul Belmondo) estão andando por uma rua parisiense enquanto ela aparenta certa tristeza. Eis que de maneira imprevisível sua personagem o abandona na calçada e começar a correr em direção a câmera, ainda sem quebrar a quarta parede e dialogar diretamente com o espectador.
No próximo plano ela com outro figurino começa a falar de maneira cantada enquanto surge uma trilha extra diegética. Angela quer fazer parte de uma comédia musical estrelada por Cyd Charisse e Gene Kelly e com coreografia de Bob Fosse. A cena bastante distanciada dramaturgicamente bem a moda do diretor já ilustra bem a magistral capacidade cênica de Anna Karina, não só como atriz, mas também como cantora como futuramente demonstraria mesmo em outros de seus filmes e numa carreira paralela. Segundo o próprio Godard, Anna nunca precisava ser dirigida, pois dirigia a si mesmo.
Alguns anos se passaram e a relação de ambos já não era mais a mesma, fazendo com que a escalação da atriz para seus filmes tenha se tornado automática sem maiores razões para acontecer como o próprio comentou a respeito de sua participação em ‘Made in USA’, o último longa conjunto.
Eis que em 1967 surge o convite para a realização do longa feito para a televisão parisiense intitulado ‘Anna’. Dirigido por Pierre Koralnik com trilha sonora original de Serge Gainsbourg e arranjos sonoros de Michel Colombier, o filme é uma merecida apoteose imagética para Anna Karina. Um filme que talvez Godard, por mais genial e apaixonado que fosse por ela, jamais teria realizado com tamanha leveza e divertimento. Mais do que uma comédia musical propriamente dita, aquela desejada por Anna/Angela em 61, o filme é uma declaração de amor do próprio cinema à atriz, uma prova de que a câmera realmente a ama.
O filme seria de maneira bastante simplista a nível comparativo como uma espécie de mistura de ‘Blow Up’, de Antonioni com ‘Funny Face’, de Stanley Donen e ‘Qui êtes-vous, Polly Maggoo?’, de William Klein. Ou seja, ‘Anna’ é um excitante desfile de imagens efervescentes numa espécie de Swinging Paris deliciosamente mood sixties como poucos filmes da época. Dentro de ‘Anna’ cinema, artes visuais, moda, fotografia, música se mesclam a movimentos de câmera, planos e seqüências de extrema graciosidade num esplendido visual. Definitivamente um filme para se ver apaixonado, não porque fala de amor (e ele fala), mas por ser amoroso.
Entre flashes fotográficos e coreografias de pura graciosidade o filme conta a história de amor de um homem por um rosto, no caso o de Anna Karina. Ele é Serge (Jean Claude Brialy que já fazia feito par românico com Karina no já citado ‘Uma Mulher é Uma Mulher’), o diretor de uma espécie de agência publicitária e fotógrafo de moda, que também trabalha em várias áreas do campo visual. Serge é o exemplo do homem inspirado pela sua profissão e bem sucedido em suas aventuras sentimentais a exemplo da canção ‘J’étais fait pour les sympathies’ cantada por ele enquanto dirige seu carro pelas ruas de Paris. Para Serge a naturalidade com que os romances surgem e vão embora fazem parte de uma habitual ciranda rotineira, própria de um hedonismo bem resolvido.
No meio de suas andanças energéticas por bares e festas ele inclusive acaba flertando num baile com uma Marianne Faitfful ou uma une jeune femme dans la soirée dansante no auge de sua beleza e jovialidade fazendo com que sua rápida presença no filme não ofusque a atenção absoluta reservada a Karina, mas ainda sim imprimindo um charme particular numa das cenas mais marcantes cantando ‘Hier ou Demain’ para o personagem de Brialy. O interessante é em como sua personagem apesar de lançar a Serge todo seu encanto em olhares acaba cantando justamente o contrário, possivelmente a negativa amorosa mais delicada da história do cinema.
Apesar de toda essa liberdade e possibilidades a sua volta Serge acaba ironicamente fixado por uma imagem que durante todo o filme se torna uma obsessão platônica: uma fotografia de Anna Karina. Ela, a mesma Anna, que trabalha como ilustradora na agência, com sua cândida postura discreta entre óculos em meio a canetas e papéis. Tão perto, mas ao mesmo tão longe, distante de ser notada verdadeiramente. O que Serge parece amar é uma imagem, porém o reconhecimento de sua origem real irá demorar o tempo desse desencontro cada vez mais acentuado em vias de uma melancólica separação eterna. Gradativamente tanto Anna quanto Serge parecem girar cada vez mais em falso nesta procura por formarem o par que tanto almejam alçando pequenos lampejos de loucura e desespero: “Suis moi jusqu’au bout de la nuit, jusqu’au bout de ma folie”.
‘Anna’ é o reflexo da eterna dicotomia entre aquilo que somos e o que projetamos ou, mais ainda, de como os outros às vezes esquecem de observar a imagem real que está diariamente diante de nós em favor de uma idealização estática resultante de nosso sonho. Para isso o filme reserva a Anna Karina um arsenal de possibilidades visuais demonstrando a fantástica versatilidade de se transformar em diversos tipos. Na tentativa de querer ser notada e na impossibilidade de uma correspondência real à imagem criada Anna transforma-se ao longo do filme em diversas facetas sendo poética, melancólica, serelepe, intelectual, sci-fi, bailarina, vintage, solitária, charmosa, mas sempre extremamente encantadora. “Je suis la roller girl, roller girl, roller girl”.
Entre o otimismo e o absurdo ‘Anna’ encontra sua plenitude na exuberância de suas imagens e sua protagonista. Um filme para se ver sob todas as formas e condições, sozinho, acompanhado de amigos ou de um amor, a única impossibilidade é a da frustração e infelicidade. Ao término somente uma certeza: Anna Karina, eu te amo.
MATHEUS MARCO
matheusmarco@brrun.com
Fotos: Divulgação