Modotopia: A possibilidade de mudança do que é real


Las Meninas de Velásquez.

O jovem está preso, acorrentado, limitado. A escolha de sua fase – juventude – não é à toa, retrata a principal zona de interdição, inclusão e exclusão dos discursos antes da idade adulta. Ao fundo, notamos uma parede em decomposição, integrando-se em uma harmonia sutil com o cenário de uma oficina mecânica, onde objetos utilitários, de conserto, de supervisão, de invenção estão espalhados categoricamente. Apesar da desordem aparente, ela não está ali, nos objetos e nas coisas. Talvez sim, no que vai ser dito e desfeito em alguns minutos. Há semanas sem se alimentar ritualizar o corpo de forma higiênica, o garoto, na penumbra do quarto, já não possibilita o seu exercício de “direito” como individuo. Está naquela linha tênue, que desde o Liberalismo da Idade Moderna (Séc. XVIII), em uma espécie de ideologização da figura do homem, separa quem é detentor da verdade ou da “liberdade”, e quem está fora deste círculo sistêmico (como se fosse possível romper destas estruturas suas barreiras). Um pequeno feixe de luz, vindo de uma porta de madeira que se abre, interrompe a desrazão da cena. Os passos lentos, calmos, sábios e fixos de um médico, aproximam-se da figura desconcertante do enclausurado. Os olhares já não se reconhecem, apenas tateiam o silêncio, em busca, não da explicação do passado, não da explicação do futuro, mas sim do perigo, da ironia e da extravagância em entender a nervura do real: o presente manifesto na memória. É chegado o instante da reatualização do Ser e da invenção do homem: o médico absorto, segura uma mangueira de água, aponta em direção ao jovem, que assustado, levanta-se na tentativa de proteger-se na parede. Explosão da imagem. Os jatos lavam o corpo do jovem. A ação estaria na ordem da normalidade, se não fosse um dado: o jovem não está nu. Vestindo uma camiseta branca e de cuecas, sua pele torna-se quase translúcida ao entrar em contato com a água. A câmera panóptica do cinema de Pedro Almodóvar aproxima-se em um zoom tão apropriado para a nossa época, que é desvendado, não pelo olhar de quem vê, mas de quem mostra que a única realidade possível ali é a que está escondida, ou no título do próprio filme “A pele que habito”.  Após o banho, a reeducação de um ser, o preparo, o cuidado. Esta parte da película se “encerra” com o médico injetando uma espécie de sonífero no “paciente”. O eterno retorno do mito da caverna de Platão. Lá fora, a luz do sol se manifesta, preparando-se para “iluminar” uma nova identidade.

Algo se agita inquieto entre a ascensão da fotografia à imagem em movimento, o cinema, e a colocação da ordem de um aparato tecnológico e virtual. Não entenderemos aqui, esta é a ideia, de uma progressão da história das ciências. Muito menos, procuraremos apontar um poder opressivo e de coerção, agindo quase sutilmente e por um instinto maniqueísta. Não se trata também de, mostrar um projeto que inicia a sua fase na Revolução Industrial com a ascensão das máquinas e culmina na subjugação dos homens por estas. Trata-se de entender, quais foram os mecanismos que permitiram a validação de uma nova maneira de reestruturar, por isto modificar, as relações entre os indivíduos. Se há um silêncio após o início do século e o advento da fotografia, esta ausência de fala, mas não de imagens, é a do nascimento, do que há tempos convenciono chamar de Ciência do Sonho.

Parece-me que há (e há) um estranhamento em intitular Ciência do Sonho, aquilo que para Theodor Adorno significou Indústria Cultural. Para esta problemática teremos que recorrer o próprio sentido e significado de ciência. Do latim scientia, que grosso modo podemos traduzir como “conhecimento”, a ciência é uma particularidade disciplinar da transição da Idade Clássica (Séculos XVI e XVII), para a Idade Moderna (Século XVIII). É um sistema de conhecer, baseado no método científico, por meio de experiências empíricas e de pesquisa da realidade. Em linhas gerais é a epistemê (estrutura de conhecimento) da nossa história recente, e o meio da verdade, mas o meio pelo qual, o que é falso é interditado por uma “verdade”. No pensamento estruturalista, a ciência, fruto da linguagem, é quem impulsiona o individuo.  Ela surge, como eu havia apontado, em um momento especifico da história, de uma mudança na ordem política e de visão de mundo, como uma espécie de novo religare – longe do sentido dogmático, mas próxima das crenças das verdades. Para toda episteme vigente há um contra-senso, ou um pensamento que forja da verdade desta episteme, o que é falso para aquela sociedade. Foi assim com a loucura transformada em doença mental na psiquiatria do século XIX. Foi assim também, com a sexualidade enquanto disciplina, e penso que é assim com o liberalismo como forma de veridição das liberdades no mercado. E não é estranho pensar que, o que foi retirado da razão moderna, da desrazão ou da “loucura” foi se transformar na Idade Moderna, o que caracteriza a nossa atual literatura? A sujeição do eu, a eliminação do narrador, o tempo não convencional, as destruturas do texto para reivindicar uma nova linguagem e a imagem como palavra (basta pensar nos simbolistas e na poesia concreta). Todos estes pontos que da literatura passaram, como era de se esperar, para o cinema, a fotografia, as artes plásticas, o teatro, a música, etc, são novamente invocados em uma nova modalidade: a tecnologia e as suas potências virtuais. Talvez isto explique a atual crise estrutural das relações, sejam elas sociais, políticas, humanas e econômicas. O que delimita, diferencia, exclui as artes convencionais – aqui incluo também as recentes, como o cinema – do novo dispositivo para o contra-senso da tecnologia e da Internet é que, as primeiras não modificam em curto prazo as relações externas, ao passo que, a segunda tem em sua gênese o próprio caráter da modificação. Algo pode explicar, talvez, o motivo, especificamente da Internet, ainda não ser categorizada em alguma das três culturas: de massa, erudita e popular.

Para que esta passagem aconteça, entre o discurso da loucura na arte e a sua reatualização em um modelo tecnológico que modifica as relações, tendo como base o que foi desta loucura, é necessária uma ruptura, uma quebra e uma descontinuidade. A invenção da tecnologia virtual, não estava ali, isolada e imaculada, esperando a chegada de um gênio para colocá-la como pauta do dia. Muito menos, e volto a insistir neste ponto, foi uma evolução pura e simples da máquina da Revolução Industrial inglesa. Ao contrário de todas estas máquinas do século XIX, que invocam um progresso das ideias, a virtualidade chama para si as ideias em constante progresso. Foi necessário um aparato, um modus operandi, uma espécie de método, de disciplina para que isto ocorresse. Em minha opinião e tese, esta mudança foi possível ao advento da moda.  Para que a reflexão ocorra, desprendida de lugares-comuns são necessários alguns pontos a) a ideia ingênua de moda entendida como responsável pelo fortalecimento e criação de desejo para a compra de tecnologia; b) a ideia romântica de moda, apenas como meio de expressão; c) moda simplesmente como o uso formal da roupa; d) a moda como algo supérfluo apenas, do mercado, sem merecimento de objeto de crítica e reflexão. São nos silêncios das coisas ditas “amenas” e na espetacularização do visível que se instalam em nossa época os desejos por novas verdades.


Escher.

Em sua recente colocação no discurso da história, a “moda” é dividida em fases: o período anterior à industrialização, chamado de alta costura, e o ulterior que convencionamos de prêt-à-porter. Como fenômeno social, tal como entendemos no contemporâneo, recolocaria estas duas fases em direção a uma terceira. Esta terceira, mais recente, mais próxima, por isto sutil, imperceptível e ideológica na descontinuidade da historicidade. É ela quem delimita a moda como moda, como expressão “individual do ser”, como uma possibilidade de linguagem. Este período corresponde à ascensão da fotografia à imagem em movimento: o cinema. É a partir daí, que lanço um olhar curioso, inquisitivo e indagador. É a partir daí, também, que a moda se torna ciência, a Ciência do Sonho, ao lado das outras sete artes. É a única ciência possível de, não explicando a realidade em suas particularidades, por meio de um método cientifico, transformar esta mesma realidade em que convencionarei chamar aqui de modotopia. O que torna possível dentro do imaginário que esta ciência opere são os planos imagéticos que se apropriam dela. O que seria da moda sem a sacralização de seu poder, por meio de capas de revistas, editoriais, fotografias e um reino de possibilidades estéticas, criados por outros? Retornaríamos então, ao apenas vestir, traçar, delimitar o corpo em seus espaços? Ora, a moda contemporânea – aqui moda, deve ser entendida como todo o fenômeno que muda o comportamento, pela apropriação das imagens, passando ao plano discursivo- apoiada nos discursos destas espetacularizações – só assim ela se realiza – é que se torna um dispositivo, um objeto a ser analisado. E é deste espetáculo sombrio e fascinante, que assistimos nascer então a questão de identidade, que mais tarde delimitará a forma das relações nas novas tecnologias.  Se não fosse possível, o seu apoio, tal como apontamos, no discurso das Ciências dos Sonhos (TV, Cinema, Revistas, Fotografia, etc), a moda não realizaria a sua capacidade identitária.  A fantasia do Mesmo é realizada somente com a colocação do discurso uniforme de certos especialistas da área. Caso contrário, seria uma fantasia isolada, única, fechada, que não corresponde ao fenômeno coletivo e de massa. É como se o individuo, sem estas alegorias da Ciência do Sonho, tivesse que recriar sozinho um universo onírico em sua imaginação, a partir apenas, do plano material do objeto.  Ora, o que marca esta terceira fase, e onde pretendo colocar o conceito de modotopia, é quando o Outro trajando essas imagens, por mais que elas sejam um crossover – todas as imagens já representadas para a sociedade estarão ali, serão identificadas – possibilita que o Mesmo, também trajando estas mesmas imagens, inicie o processo de fixação da identidade. Na sociedade do espetáculo, do mass media e da moda, “os modos” operantes de identidades acontecem por um jogo duplo de espelhos, possibilitando então, a impressão de que, aquela imagem vista no Outro seja a sua, quando dentro desta realidade, não passa de uma passagem para a afirmação/negação. Destes extremos talvez, suponho, nascem as retiradas de uma ideia de moda (tendências), para uma moda de ideias. É neste ponto então, que o papel do criador se retira de cena, para dar lugar à soberania limitada e definida do Mesmo e do Outro.  A moda é por excelência o vestir o Outro.

Se o desejo é voltado ao Outro, puro e simplesmente, amamos (desejamos) não os objetos produzidos pela moda, mas os discursos e as instituições que os cercam, ou em linhas gerais a modotopia? É limitado ainda, pensar que esta nova modalidade disciplinar aponte para a recolocação do discurso do que no passado foi abjeto e jogado às margens sombrias e sexualizadas da literatura. Paradoxal pensar também que, retornamos, talvez, ao desejo de apropriação da arte na vida. Resta entender agora, como e de quais maneiras essa apropriação nas novas tecnologias recriará a figura de um homem que está em vias de desaparecer.

E utilizei acima estes exemplos, o primeiro imagético (do filme) e o segundo arqueológico na tentativa de elucidar a colocação do que o filosofo Michel Foucault chamou de biopolítica. Em última instância, esse novo saber que se instala em nossas vidas, só foi possível por uma mudança de passagem pelo corpo e para o corpo. Este sim, a única realidade material possível, em tempos em que buscamos a compreensão do que é o real (?). “O que permite tornar legível o real é mostrar simplesmente que ele foi possível”, M. Foucault em “Nascimento da biopolítica”. É o que, por meio da modotopia, como espaço de transformação das identidades, procuraremos entender essa “nova realidade” que se descortina em nossas peles: talvez um novo estágio do corpo, que identifico, por hora, como biovirtualidade.

Ponto de Vista:
ModotopiaÉ o dispositivo onde todas as atividades que compõem a Ciência do Sonho: teatro, cinema, fotografia, música, dança, artes plásticas, TV, Rádio, Propaganda, se encontram. É o local de realização da identidade do Mesmo pelo Outro. Em minha análise, este período é possível com a colocação da moda no contemporâneo, no pós-prêt-à-porter, especificamente com a chegada de um aparato de espetáculo para a moda, ou historicamente e ironicamente, na década de 60 e 70, quando os ideais libertários se apropriam e fortalecem esta linguagem. É ainda, o meio de transição possível para estabelecer uma nova modalidade de relações, pautadas, atualmente nas tecnologias virtuais.

BRUNNO ALMEIDA MAIA
brunnoalmeida@brrun.com

Fotos: Divulgação