“É na imensidão dos Céus que se delineia o Objetivo puro que corresponde a um Visual puro. É pelo movimento regular dos astros que se regula o Destino. Se alguma coisa é fatal em nossa vida, é porque uma estrela nos domina e nos arrasta.”
Gaston Bachelard.
E LARS VON TRIER ‘DES FAZ’ O MUNDO
Não é de hoje que Lars Von Trier sempre articulou seus filmes de acordo com uma lógica de controle, sendo sua direção o correspondente mais expressivo de comando e superioridade. Dinamarquês como Carl Theodor Dreyer, talvez exista aí uma herança religiosa e metafísica incrustada nas duas linhagens, apesar de ser uma heresia, pra ficar no terreno do divino, comparar o cinema e cada um dos realizadores.
O natural e esperado par manual que organiza e espalha as peças cênicas, humanas, dramáticas e visuais ganha em seu específico ofício uma inclinação ainda maior à catarse destruidora. Não é mero acaso que a jornada envolta de paixão (lembremos seu verdadeiro significado), romântica (pensemos no seu sentido menos óbvio e superficial, mas histórico) e extensa de suas personagens femininas seja tão lembrada, passando em muitos casos a contaminar também as atrizes que cometem esses papéis. Cometer, pois o cinema de Von Trier possui algo de criminoso, cruel e talvez por isso tão impactante, controverso e memorável na inconsciência visual.
Como Maria Falconetti (novamente o grito a Dreyer) ultrapassando os limites da encenação e da vivência absoluta da personagem, as atrizes e personagens de Von Trier são uma só, assim como mais para a frente observaremos ser as duas irmãs de seu ‘Melancolia’. Seus mártires são o redemoinho trágico e ascendente do que são os próprios filmes em última instância, a arquitetura, construção de uma devoção ao céu ou ao inferno, ao prazer ou a dor: a ambos. Cataclismo de corpo e espírito, destruição da égide criadora.
Lars Von Trier, diretor de seu próprio nariz, inclusive girando em falso com declarações públicas e planos às vezes enigmáticos, puramente plásticos, que vão da beira do risível ao inacreditável espetacular. Não há quem ouse piscar. Maior que seu nariz, sua câmera ou barriga, é seu desejo pela afirmação. Rei de seu majestoso jogo de xadrez cênico, de sua vila, estúdio ou planta baixa do horror contemplativo. E o pior é que ele consegue e inevitavelmente triunfa em sua favorita brincadeira de fazer filmes, como um operário artista.
‘Melancolia’ é um belo exemplo de seu poder de simultaneamente ser o pedreiro, pintor e destruir raivoso, anarquista gratuito de seus pesadelos. Mais cara e difícil do que a realização de uma sessão psiquiátrica, clínica, acima de todas as psicologias, a sessão de cinema e a realização então de um filme podem salvar, se não curar, os males de uma mente perturbada. Fazer um filme para não enlouquecer, para se refugiar enquanto tudo se expõe, sem controle. Movimento paradoxal do cinema que opera pela capacidade de exposição magnânima, mas também retrai, interioriza. A superfície comum entre os dois mundos, interior e exterior, remédio e veneno, maldição e alquimia: destino-cinema.
Salvação e danação andam juntas, como um espelho duplo, reflexo em ambos os lados que presos nas laterais podem girar ludicamente no espanto e trocas. As irmãs transferem seus fluxos e refluxos, assim como o espaço reflete ao mesmo tempo a consagração íntima da vida e da morte. Diferente do balé de Malick, o concerto de Von Trier é funesto e alegre, como uma festa obscura, mágica, celestial, a celebração de um extremo.
Esta criança psicologicamente obcecada por suas marionetes fabrica seu pequeno mundo com as pinceladas de um autor malévolo e risonho, sorrateiro e deslumbrado pelo poder. Já no primeiro dos três capítulos em que se divide o filme é possível perceber exatamente esta tendência do fabricante de imagens, o arquiteto no seu quarto de brinquedos.
O gosto cada vez mais acentuado por uma série de tableaux vivants em extrema câmera lenta que dificilmente saem da memória com muita facilidade denotam a vontade de Von Trier em compor quase que de maneira pictórica, surreal, como uma pintura antiga ou comic book infantil em viés assombroso a sua visão de aquário gelatinoso, ajudado pelo tema de Tristão de Isolda de Wagner que nesses momentos parecem remeter a uma sensação Disney nos seus momentos de maior mistério e apavoramento.
Sombrio e fantástico, mas também tão terreno, esta primeira parte do filme dará tudo o que precisamos saber e sentir. Já saberemos o que irá acontecer, porém o choque permanecerá o mesmo, até mesmo pela diferença formal no tratamento das cenas, sua velocidade, construção visual. É como o epílogo tão recorrente em sua filmografia, mas desta vez mais acentuado do que em todas as outras enquanto livro, bíblia imagética. ‘Melancolia’ é a versão de Von Trier ao Apocalipse de São João. Como páginas quase estáticas de pura visualização a operação de fixar o quadro, dimensões, cores, sua asfixiante letargia de deslumbramento vai atingindo o grau cósmico do impossível.
Estaremos tão longe e tão alto, mas iremos descer e nos agarrar ao que há de mais terreno. Lá estarão esperando os mecanismos do dinheiro, o casamento burguês e seus rituais, as relações profissionais e familiares, as aparências e a pouca paciência, o desejo e o cansaço por todos os lados. Nada irá resistir principalmente as inseguranças. Pouco a pouco Von Trier irá desarmar os amores e mesmo as paixões, os medos e fraquezas. Só permanecerá firme e vitoriosa a certeza, a brutalidade, a segurança. Diferente do controle do cineasta, a certeza do mundo.
Melancolia, o planeta, esplendoroso em seu encanto fúnebre, hipnotizando todos os dogmas e belezas, atraindo como uma lua azulada os corpos, seja em nudez ou no olhar mortificado dos que o temem, admirado aos que se encantam. Sua brutalidade imponderável, fora de qualquer controle vaga, circunda e ascende derrubando todo o espetáculo.
‘Melancolia’, o filme, castelo de cartas cuidadosamente elevado por Von Trier começa imponente, construindo-se e sendo apresentado, aparecendo para todos lentamente, com todo seu charme, como um gás venenoso de encantamento. A retina pára por um longo tempo, apreciando a destruição intacta de tudo aquilo que parece estar a ponto de se cristalizar.
E então chegamos a Justine e Claire.
A segunda e terceira parte do filme correspondem respectivamente a cada uma delas, sendo cada uma das irmãs uma espécie de reflexão do estado da outra, apesar de notáveis variações nos comportamentos individuais. O tratamento dado aos dois blocos é o habitual utilizado pelo diretor em diversos filmes, feito com câmera na mão e uma montagem que parece fazer os cortes girarem em curva como se os planos principalmente nos pontos de diálogos estivessem sendo retalhados, deixando sobras ou perdendo pedaços.
Assim é a movimentação fluída na maioria das vezes entre os planos e seqüências, como se pequenas elipses estivessem imperceptivelmente entrelaçadas no tempo interno dos eventos, dos pequenos e médios até aos grandes. E em ‘Melancholia’ pequeno e grande são sempre pontos de vista bastante próximos dentro da estufa micro e macroscópica preparara por Von Trier.
Acompanharemos a narrativa primeiro a partir de Justine (Kirsten Dunst) que está prestes a se casar com seu apaixonado noivo Michael (Alexander Skarsgård). Assim como o casal de ‘Ondas do Destino’, o figurino (e há realmente esta figuração não enquanto mero vestido) de casamento logo estará sujo, rasgado ou revirado pelas mãos e locações, objetos, móveis, corpos. A felicidade matrimonial sempre dura pouco e cada vez mais em seus filmes dura ainda menos.
Os gracejos entre os noivos irradiam já fracamente como se eles fossem apenas dois amigos que se encaminham descompromissadamente para um a festa a fantasia. Durante o caminho para o baile pós cerimônia a brincadeira e os sorrisos mais suaves surgem por um impedimento, a lama e a terra já parecem reter o inevitável antes de tudo ser jorrado em clemência como uma bomba de gás azul.
Com horas de atraso o casal chega até o local da festa, uma espécie de mansão com ares de castelo localizada numa região afastada da vila, em meio à natureza, um extenso gramado de golfe, jardins, animais e uma visão esplendida do céu.
Na entrada da opulenta residência o casal é recepcionado pelos cunhados do noivo John (Kiefer Sutherland) e Claire (Charlotte Gainsbourg), irmã de Justine. Porém antes de entrar no interior da mansão Justice olha para o céu. Por trás da lupa do controle transparente ela encontra um ponto vermelho. John, que é astrônomo, informa que a luz brilhante que misteriosamente chamou a atenção de Justine trata-se de Antares, a estrela gigante na constelação de Escorpião. Ali John e Justine parecem saber em silêncio o quanto de adivinhação, feitiço e painel de mistério existe naquela visão. Canto das sereias aos olhos enganados: casamento, astronomia; transformação.
Lá dentro o arsenal de ritos em opaco dourado acabarão por adornar o começo do gradativo desfalecimento de todos os ânimos. Pouco a pouco iremos acompanhar a lenta desintegração das relações concretas que nos levará diretamente para uma espécie de catatonia esperançosa, ao desespero e finalmente ao desprendimento e entrega de todos os sentidos. O plano (não cinematográfico, mas social) pequeno burguês fadado ao fracasso e grosseiramente metaforizado no primeiro bloco do filme está ali enquanto mais um sintoma enfadonho de um mundo que se despede.
A festa que custou demais ao anfitrião sem verdadeiramente causa-lo qualquer prejuízo, exceto em sua paciência e polidez perante às aparências familiares, a sogra (Charlotte Rampling) indiferente e amarga que nem enquanto atriz da farsa cerimonial consegue ainda se sustentar, o sogro (John Hurt) que ainda tentar brincar em cansaço dentro do jogo abandonado, o chefe (Stellan Skarsgård) perdido na mecanicidade do trabalho e slogans, o encarregado da cerimônia festiva (Udo Kier) que não suporta mais ver, aquela cuja imagem é insuportável e claro, a irmã desta cuja visão suportará o peso do inevitável.
A visão sempre será o guia primordial por todas as coisas em ‘Melancolia’. É Justine que olha para Antares ou o que teoricamente seria a tal estrela e recebe em troca um misterioso olhar que confirma ou nega sua suspeita. Nietzsche já dizia que se olhamos para o abismo, ele também nos olha. Um pouco depois é ainda o olhar de Justine para o alto observando os balões incandescentes que existirão por pouco tempo tornando-se completamente fogo e cinzas.
Já no terceiro bloco destinado a Claire é novamente o olhar de Justine primeiro abandonado, apático e vazio no sintoma extremo de seu estado melancólico que não resistirá a nenhuma fixação presente, física. Este olhar que gradativamente buscará novamente o céu e encontrará sob o feitiço grandioso do planeta Melancolia mais uma vez algo a confirmar ou negar seu alívio ou descrença. Além disso, há os olhares inspirados de John, seu cunhado e marido de Claire, e de seu sobrinho Leo (Cameron Spurr) esperando sem temer a aproximação planetária para chegarmos finalmente ao olhar temeroso e falsamente controlado de Claire. Ela cuja assistência a Justine num primeiro momento foi tão resistente, importante e acabará por desabar, literalmente, contra o cosmo.
A afasia de Justine, sua perda cognitiva, restando apenas o corpo biológico do primeiro momento pós o casamento arruinado lentamente torna-se uma crença niilista na transformação, superação e ao desapego. A vida que só existe na Terra e não por muito tempo, como ela mesma diz, não será nem ao menos lembrada, ninguém sentirá falta. O rosto enfraquecido e às vezes branco, abobalhado e redondo de Dunst logo aparece como um oráculo a se corresponder. Já a maternal segurança de Claire expressa por Gainsbourg logo se torna limpidez, humanidade e insegurança, ansiedade perante o fim iminente. A todos, inclusive a nós enquanto espectadores, só resta esse paisagem ou rostidade para ver, observar de forma impassível até a catástrofe esperada.
A melancolia de Dunst (e Von Trier) se transfigura fisicamente na tela enquanto direção e interpretação, presença humana, rosto, numa espécie de muro das lamentações que poderemos nos apoderar enquanto refúgio e abrigo nos minutos finais. Dessa mesma forma, e ainda mais do que nós, Claire e seu filho poderão se segurar e esperar catarticamente pelo que já era previsto, mais uma vez assim como nós.
Em seu clímax de pura entrega, Lars Von Trier nos oferece uma luz azul incandescente, a cromoterapia para nos salvar ou nos destruir em igual potência. Seu mundo, ou filme, frontalmente se desintegra perante nossos olhos. Não há enquadramento para apoiarmos no peito e simplesmente ter qualquer resposta. Quando tudo se destrói não há nada a perguntar, nada a responder: o fim do mundo é o fim de um filme.
MATHEUS MARCO
matheusmarco@brrun.com
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