A Árvore da Vida

FILME DE CINEASTA

Árdua tarefa, ou mágica, a daquele que consegue irromper com tamanha magnitude um ponto de vista absolutamente subjetivo sobre determinado tema. ‘A Árvore da Vida’, de Terrence Malick é um caso de filme em que não podemos falar a respeito de uma história, mas sim de um tema. Seu roteiro, sob qualquer forma que ele em si possa ter, deveria certamente ser chamado de uma partitura e sua direção e posterior montagem estão consideravelmente mais próximas de uma ópera, um concerto musical com imagens. Há quem diga que os grandes cineastas são na verdade grandes músicos, maestros de enorme capacidade sensível, até porque o cinema ao contrário do que todos pensam possuiria uma relação muito mais direta com a música do que com a literatura ou mesmo a pintura. Este então seria, junto com alguns outros na história do cinema, uma excelente demonstração de tal relação. Mas apesar de tudo isso ele continua sendo um filme. Um filme.

Parafraseando Sganzerla, ‘A Árvore da Vida’ deveria ser anunciado como ‘um filme de cinema de Terrence Malick’ ou, melhor ainda, ‘um filme de cineasta de Terrence Malick’. Não há outro espaço de existência para ele, a não ser seu próprio destino universal, espacial, aquele ao qual seria enviado de maneira privilegiada, a uma outra distante galáxia enquanto registro da nossa vida na Terra, de nossa arte. Ao mesmo tempo uma elegia e uma apoteose, um fenômeno raro de regozijo artístico, o filme, esta instância ironicamente tão aprisionada em uma forma específica dentro de um determinado fluxo de tempo e também tão mutável, consegue encontrar sua manifestação de vida. Terrence Malick num passe de imagem faz um filme caro a todos os cineastas, uma obra (prima) que sem sombra de dúvidas perturba o núcleo de inspiração e realização de cada diretor em potencial. É o que poderíamos chamar de Filme Trailer, a difícil orquestração de Tudo.

Difícil, pois o que Malick tende a fazer surgir diante da escuridão (criativa, da própria realidade disponível a ser captada pela câmera, da sala de projeção) é ordenar uma série de planos arriscados a qualquer manipulador cheio de graça. Seu ‘filme tudo’ justamente por isso mesmo teria tudo para girar em falso seja pelo seu discurso, tomado pela presença quase onipresente de voice over, atualmente raro até num conceito de filme de arte ou europeu (aquilo que ele não é) etc, ou mesmo o próprio conteúdo dessas vozes; com a escolha de suas imagens inspiradas que numa descrição verbal a qualquer desavisado poderia sugerir uma coleção clichê de vídeos de auto-ajuda, religiosos ou pré-fabricados num conceito de beleza e contemplação.

Mas não, lá onde tudo corria o risco de cair, a gravidade dos filmes que escorrem da tela para depois serem removidos a rodo pelos funcionários ao fim da sessão, ele o faz crescer, fazer rodopios leves, bailar em linhas, curvas, ascender, evolar em espirais lentas e grandiosas. Passe de imagem. De dentro da cartola-câmera de Malick o seu coelho branco chama-se Filme, com F maiúsculo. F de Fenômeno.

Não é de estranhar a consagração da Palma de Ouro de 2011 ou a reação paranóica de confusão do público norte-americano ao filme. Não que ele esteja acima de todos os outros ou precise ser antecipadamente reverenciado enquanto clássico indiscutível, até porque não é livre de ressalvas como, por exemplo, os momentos mais contemporâneos de Sean Peen, um tanto enfraquecidos e desarticulados dentro da força tão plácida e destruidora da porção metafísica e ou da familiar protagonizada por Brad Pitt, Jessica Chastain e Hunter McCracken. Porém a tarefa de Malick surpreende por conseguir extrair até mesmo de onde parecia impossível, ou inesperado, pela própria condução do filme naquela que é sua porção narrativa mais codificada dentro do todo.

A partir das trevas surgirá a luz, fagulha luminosa da criação. ‘A Árvore da Vida’, objeto divino e terreno e Terrence Mallick ao mesmo tempo homem e Deus. Inclusive onipresente em todas as conferências de imprensa tendo sido representado por Pitt em Cannes no qual agraciado com o já citado maior prêmio do festival, teve sua entrega destinada aos produtores. Malick não foi. Assim como Deus, posto a dúvida por aqueles que querem ou podem ver, só tem como prova o milagre do visível. Se Daquele que todos acreditam o que temos é o mundo, de Malick, o cineasta, temos igualmente o mundo, igualmente um visível.

Destinados simultaneamente ao controlado e ao imprevisível. Não há como negar a força de controle presente nas seqüências espaciais, o lento balé dos gases, planetas e estrelas se fundindo, em crescimento, expansão, transformando-se ou então o descontrole funcional celular, o frenesi dos fluidos em movimento. É um caminho do macro ao micro e vice versa. Se quando morremos assistimos toda nossa vida passar diante de nossos olhos (como num filme), ‘A Árvore da Vida’ é ao mesmo tempo o fim e o começo de várias vidas simultâneas e por isso mesmo não seria de se estranhar sua seqüência final coletiva, quase espiritual em direção a uma imensidão inexplicável.

O fim e o começo da Vida. Nem positivo, nem negativo, operando em todas as vias e direções é também um filme de desvios, um filme matemático, geométrico em sua transcendência. A matemática da Natureza, espiritual e racional, como a perfeição biológica de certas formas naturais, espirais contemplativas cujas medidas são assustadoramente perfeitas. Um filme de linhas de fuga, “pensar é sempre seguir a linha de fuga do vôo da bruxa”, diriam Deleuze e Guattari. Uma câmera que absurdamente presente, alça movimentos tão articulados, vira, avança, flutua, pende às laterais, perde seu ponto de gravidade, balança suave, dança pelos espaços, deseja a todo o momento subir ao céu (e sobe); câmera girassol sempre a procura da luz, dos raios solares.

Uma câmera tão presente e ao mesmo tempo tão invisível, quase toca a pele dos personagens, incrivelmente dentro do ar respirado por eles, absorvida pelo meio, este então absorvido por ela: troca perfeita entre as fronteiras ‘à frente e por trás da câmera’. A tela não é o bastante, ela por si só não resiste às imagens de ‘A Árvore da Vida’ como nos vários momentos em que o filme parece vazar pelas diagonais do quadro, esticando-se, querendo tomar conta de todo o espaço, ilimitável, divino. Pensar é sempre seguir a linha de fuga do vôo da bruxa. O vôo do mágico é feito de truques de proporção, aparecimento e desaparecimento, cortes abruptos. Não é a toa que em ‘Fantasia’ o Mickey que faz mágica opera também por meio da música, as mãos que moldam o mundo, aquelas que o enquadram, manipulam tudo a sua volta, fazem surgir, dão vida, fazem dançar, aparecer.

Novamente o cinema e sua herança musical. Godard antes já afirmara que uma imagem é mais interessante e mais democrática do que a música que seria por sua vez mais perigosa e também mais agradável devido à sua sedução, ao seu sortilégio. Cinema, Mágica, Música: sortilégio. O feitiço da ilusão, alquimia das imagens que poderiam se misturar em inesgotáveis maneiras possíveis, mas que se apresentam então em certa comunhão específica. Como Kulechov já nos mostrou há uma natureza quase química dentro do cinema, mais especificamente da montagem cinematográfica que numa espécie de infinita tabela de Mendelev tem o poder de criar resultados fascinantes aos sentidos. O efeito resultado depende invariavelmente de todas as tentativas de agrupamento desses planos, átomos vivos repletos de sons, cores e formas. Malick aprisiona dentro de sua câmera o mundo, o furto filosófico de todo cineasta, sua dívida com as imagens originais que só é pago por sua futura retribuição dessas mesmas imagens ao mundo da qual foram originadas. O roubo ontológico que então é agraciado através deste oferecimento, papel de agradecimento daquele que se apodera do visível.

A física presente no ato de forçar dentro de um determinado quadro toda a imensidão possível do olhar humano. Forçamos uma realidade a caber dentro do campo, energia visual acumulada a ponto da explosão. No limiar do big bang imagético eis que surge a química da montagem. Tudo aquilo que estava em estado de latência volta a se agitar mais ainda para que finalmente aconteça o imprevisível previsto: o surgimento de uma obra cinematográfica. Assim como foi a formação do Universo, houve então a formação de um Filme, pronto a irradiar dentro de uma sala de cinema. A Vida continua, graças a (Deus) Imagem.

MATHEUS MARCO
matheusmarco@brrun.com

Fotos: TwoWaysThroughLife.com / Super vale a visita no tumblr: http://twowaysthroughlife.tumblr.com/