No século XV uma gravura de Albrecht Dürer intitulada “Melancolia I” desnuda a imagem ideológica daquele tempo. O caráter melancólico desposa a geometria, com constastes de serenidade e harmonia: a investigação do universo, por meio das “artes práticas”. Em “Escola de Atenas”, do geômetra Euclides, o prenúncio do homem barroco, sua indagação do mundo e do universo nas bibliotecas e nos livros. O ser melancólico deixa cair os instrumentos, ou os tem, inoperantes nas mãos. Como descreve Humberto Eco em “História da Beleza”, duas particularidades do estado de espírito. No primeiro, ars geometrica, no qual a geometria adquire uma alma. No último, o homo melancolicus: a brutalidade da intelectualidade plena.
Se a nossa época foi marcada pelo constante desejo de dominar o mundo, característica “natural” do ser humano por meio das forças de trabalho foi também a sociedade que mais soluçou o cansaço e o desânimo que sentimos hoje. Após o início das lutas e as reivindicações dos Direitos, sua pungência e estado de sítio. Como em “Melancolia I” o homem contemporâneo ainda busca sua resistência à barbárie, através da organização de uma “sociedade de trabalho”. Em nossa sociedade, quando o trabalho adquire a sua forma atual? Ou melhor, não seria o trabalho, tal qual o conhecemos, o responsável pela opressão na era tecnológica?
Na história do capitalismo ou das sociedades modernas, presenciamos a santificação do ato de trabalhar. De um lado, a moral judaico-cristã que colocou a prática na ordem do discurso religioso, tornando-o fonte inesgotável de sentimento de elevação, para os que vangloriam o ato, e culpa, para aqueles que desprezam a sua importância. Com o avanço da burguesia, na sequência seu amadurecimento na Revolução Industrial, culminando com o capitalismo moderno, a ideia dominante passa a classificar o trabalho como ordem de ascensão social, progresso e “avanço”. É neste período crucial, que nos debruçaremos para entender de que forma a ordem burguesa e industrial transformou o trabalho humano em mercadoria e capital, e em como essa Ideologia ocupou-se de nos furtar a noção de tempo, espaço e poesia, realizando então, a junção entre homem e máquina.
Melancolia I de Albrecht Dürer e Escola de Atenas de Euclides.
Com a ascensão das sociedades industriais na Grã Bretanha do Século XIX, notamos um “paradoxo” que define as relações de poder em nossa situação vigente. Surge no seio deste período, os antagonismos de classes, ou a dialética marxista, formada pelo proletariado e pela classe dominante. Segundo a história clássica, este período surge em um momento de separação entre a cidade e o campo, consequência direta da recente Revolução Industrial, dos novos meios de produção e das invenções das tecnologias. Para os pesquisadores e estudiosos do socialismo, esse dado não é suficiente. Apesar da ordem do dia ser pautada, sobretudo, pela passagem do trabalhador do campo à cidade, é somente com a formação de uma nova classe social que o projeto político da época se consolida. Não eram apenas os operários das fábricas que compunham essa nova classe. Antes da Primeira Grande Guerra, a economia e a ordem social ainda transitavam entre os pequenos artesões, comerciantes e portadores de habilidades manuais independentes. Este projeto só foi possível com a dominação de todas as esferas da vida social. Em torno das fábricas, ruas e bairros eram convocados a denunciar a nova ordem que se estabelecia, não só nos interiores das fábricas, mas na vida privada e nas particularidades do cotidiano. O trabalho moderno de concepção burguesa ocupa as relações familiares, educacionais, culturais e artísticas. Os espaços pertencentes às relações humanas são substituídos pelas relações de mercadoria. Nasce então, uma nova modalidade de sociedade, na qual Foucault denominou de disciplinar.
Nascida na Revolução Francesa, a esquerda ocupava, em oposição ao conservadorismo da direita, o papel de proclamar os lemas e os ideais de liberdade, fraternidade e igualdade, transformando-os em prelúdios da Democracia. Neste ponto, a mudança estrutural do trabalho, não sofreria grandes cataclismos como nos séculos seguintes. É a partir da chegada da industrialização, que a esquerda passa a se preocupar também, com a questão do trabalho e do trabalhador.
De uma esquerda revolucionária das liberdades francesas, presenciamos uma nova modalidade que não mais se adequava a transformação da sociedade, por meio de ideais libertários, mas a adaptação com outras regras aos novos dispositivos. Sindicatos, greves, grupos trabalhistas e partidos políticos, sob as ideias do filósofo e sociólogo Karl Marx e Engels denunciavam as mazelas e as exceções sofridas pelas novas autoridades. O poder que mora ao lado, duvidando da “eficácia” dos outros poderes, discursa sobre uma série de transformações, não na ordem estrutural, como fez o projeto burguês em seu nascimento, mas na ordem da legalidade e da tomada de poder.
As leis e os direitos trabalhistas, não fizeram se não aprofundar uma nova ordem moral burguesa, herdada em parte da moral cristã: a benevolência. Não que estas leis, no modelo vigente, não cumprem seu papel fundamental: retirar as mazelas de um regime que por si é mazelado. Fazem-se leis para que o operário sinta-se na obrigação de prolongar o seu dever, estendendo o seu ofício para além do proposto inicialmente. De uma sociedade legalista e legislativa, passamos a uma sociedade em que cumprir estas normas é um dever de cidadania. Desmerecê-la é uma infração, não mais à ordem religiosa, como se propunha no dever moral cristão do trabalho, mas à ordem do Estado de Direito, ou ainda, a ordem de todos. Fere-se então, a cabeça “bondosa” do rei.
O surgimento da classe trabalhadora e a sua consciência no século XIX.
Talvez isto explique o aparente fracasso das esquerdas em nossa época, que ao pautar o seu discurso pela normalidade, esqueceu-se de seu papel histórico de negá-la e transformá-la. Como pontuou sabiamente o crítico literário Antonio Candido em entrevista ao site “Brasil de Fato”: “O que se pensa que é a face humana do capitalismo é o que o socialismo arrancou dele”, adiante “(…) o socialismo foi extraordinário para pensar a distribuição econômica, mas não foi tão eficiente para efetivamente fazer a produção”.
Mundo dividido novamente em dois blocos: a Europa e os EUA agonizando em seus mercados financeiros uma crise, e a América Latina e os países do BRIC em intocáveis ascensões. As políticas adotadas nestes últimos simulam os caminhos estruturais daqueles que submergem. Há apenas uma diferença: o poder se desloca da classe dominante, para a classe dominada, sem o desejo de mudar as relações que foram construídas durante os anos de opressão? Estamos vivendo apenas uma inversão no Globo, ou de fato uma mudança?
Em “Tempos Modernos”, de 1936, o ator e cineasta britânico Charles Chaplin denuncia a consequente industrialização do homem, que provoca as facilidades na criminalidade e na servidão. Ironicamente, sua personagem recebeu o nome de The Tramp (O Vagabundo). Há uma estranha relação com o que foi exposto: o contrário do “trabalhador” (moderno), que não se adéqua ao sistema vigente e estabelecido é o do vagabundo, ocioso e preguiçoso. Não por caso, a genialidade de Chaplin coloca em cena uma moça jovem da rua. Apaixonado com a sua imagem, o operário, assim como o ser melancólico de Escola de Atenas, deixa cair os instrumentos, ou os tem, inoperantes nas mãos. Seu destino é inevitável: o confinamento em um hospício.
Em outro filme, desta vez brasileiro, temos uma situação semelhante: a personagem central, ao deixar a sua aldeia rumo à “civilização”, depara-se com o choque cultural provocado pela mecanização do homem. Em uma fala interessante expõe: “O homem torna-se máquina, e as máquinas tornam-se homens”. “Macunaíma”, filme homônimo, inspirado na obra de Mário de Andrade, e dirigido por Joaquim Pedro de Andrade é um manifesto de nossa época. Com o título de anti-herói carrega em si, os arquetípicos do povo brasileiro, e a oposição ao regime autoritário burguês, que já em “O povo brasileiro”, o sociólogo Darcy Ribeiro contava no capítulo inicial em como o português enxergava o índio, e em como este último via o europeu. “Ai que preguiça” é uma poética não apenas no cinema, mas na ordem social e política. É o contrário, a provocação da moralidade e da santidade que o trabalho se ocupou em nossa época. Assim como no samba, Macunaíma carrega em si a profundidade da melancolia criativa. Dois pontos negados por excelência, não só pela ordem pós-industrial, mas principalmente pelo seu simulacro: a classe trabalhadora.
Ora, não prenunciaram que a tecnologia pressuporia a redução do trabalho e o direito ao corpo? O que notamos de fato, é que o projeto de biopoder passa dos corpos ao corpo-máquina, reduzindo-os não à melancolia criativa, mas à tristeza degenerescente que o nosso século não explica. Da redução, assistimos então, a ascensão do aumento da jornada de trabalho. Os corpos não satisfeitos imaculam-se e prolongam-se em outras máquinas: a das academias. Como se não bastasse a exclusão do corpo orgânico pela tecnologia, o homem exclui sua última possibilidade de humanidade, exercitando então, a sua “máquina” para servir prolongadamente às novas invenções. Esta máquina passa então de servidão ao trabalho, para as relações humanas. Como em “Time”, obra-prima de 2006 de Kim Ki-Duk, jovens decidem utilizar a mudança plástica como forma de aceitação e adequação. O corpo vira relógio, com ponteiro girando ao contrário. O tempo torna-se plástico, material, estético. É dessa valorização do trabalho, da reivindicação do progresso, e da injúria ao ócio, à preguiça, à contemplação que nasce em nosso século a arte como mercadoria. Não mais tempo para fruição, mas sim consumo. Não mais tempo para apreciá-la, mas colocá-la na ordem do discurso do dinheiro. Materialização e prolongação da arte, como objeto, status quo e valor em um museu. A arte passa então de estética da existência à ética da onipresença. Esta última é o totalitarismo do século XXI, que dissimulamos deixar confinado nos finais das duas grandes guerras mundiais.
Não é à toa, que no romance “Nos Penhascos de Mármore”, de Ernst Jünger a personagem central ocupa-se da contemplação botânica, da natureza e das artes, em oposição à chegada de um regime totalitário que se anuncia. Hannah Arendt, filósofa do século XX, expõe em sua frase esse temível medo que a ordem estabelece em nossos corpos. “Não há pensamentos perigosos; pensar em si mesmo já é perigoso”. Retiram do homem o seu direito ao pensamento, ao corpo, ao intelecto. E não existem estes três pontos sem a noção de tempo-espaço que nos foi roubada com a supremacia e a ditadura do trabalho.
Decifra-me ou devoro-te.
O tempo configurado na mitologia grega no deus Chronos: aquele que ao devorar seu próprio filho, metaforiza a existência do tempo como devorador dos seres. Nesta mesma sociedade que soube conviver humanamente com seu aspecto religioso – ao contrário da nossa, em que a religião se ideologizou e tornou-se violência e forma de exclusão – valorizava o tempo. Não o tempo da produção, no sentido atual do capital, mas da produção intelectual em sua ágora política. É certo que para o grego, o único deus representativo do trabalho, Hefesto, estava mais próxima de um ideal humano do que de santidade. Não há também, nos povos intuitivos um deus que represente a preguiça e o ócio. Estas duas últimas palavras são construções recentes para afastar a noção do devorar de Chronos. Se há algo que nos aproxima dos povos gregos, é a escravidão. Para que outros desfrutem de seus tempos livres, a servidão voluntária se faz necessária.
Tempo que, aliás, a filosofia moderna ocupou-se de investigar no campo da reflexão cientifica. Com a Teoria da Relatividade de Albert Einstein, a questão da temporalidade adquire uma quarta-dimensão. Na quadridimensionalidade a negação de passado, presente e futuro. Assim, o modo quadridimensional de pensar o espaço e o tempo revela que não há algo como o fluxo do tempo. Mas, para ser definitivamente satisfatório, esse quadro revelou por que vivemos a ilusão de que o tempo, em algum sentido, flui. Novamente, a Ideologia de uma época presente no campo das ciências humanas.
Esta noção de tempo-contemplação que é mostrada no cinema oriental, e por alguns mestres da sétima arte ocidental, como o dinamarquês Lars Von Trier. Em seu recente “Melancholia” um excesso de tempo para entendermos que a personagem Justine (Kirsten Dunst), não se aterroriza perante a chegada do planeta que “destruirá a terra” – metáfora do terror conta a ordem em falência – a sua concepção e sentido está distante da realidade de Claire (Charlotte Gainsbourg).
Se o passado reivindicou a ordem dos lemas da Revolução Francesa, da inserção do proletariado como forma de liberdades, a sociedade moderna descansa no desejo, na vontade de verdade do ato do ócio e da melancolia criativa como armas de subversão. Talvez, deixemos de lado, os teóricos clássicos do socialismo e busquemos na anarquia nauseante do filósofo Paul Lafargue, e seu “Elogio à Preguiça”, os paradigmas contra a violência, a brutalidade e a barbárie que se seguem. “Sejamos preguiçosos em tudo, exceto em amar e em beber, exceto em sermos preguiçosos.”, prefaceia o autor em sua obra. Não nos decepcionemos: que os desesperados pelo aniquilamento das falsas e antigas paixões preparem suas cordas para o enforcamento: O século XXI será o século do socialismo. Menos “inclusivo”, e mais excludente dos valores que construímos com a burguesia, nem que para isto, sejamos anti-heróis, e deixemos dominar o homo melancolicus.
BRUNNO ALMEIDA MAIA
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