Protesto Dilma durante o desfile o SPFW, desfile da Cavalera.
Na França, em um intervalo de tempo generoso, dois fatos definiram os rumos da história ocidental, ou para ser mais preciso, inscreveram o homem naquela singularidade que está prestes a ruir: a modernidade. O primeiro, por estas decisões do nosso modo de contar as coisas, separando-as, dividindo-as, tratando a esfera da subjetividade como algo menor do aspecto político, ocupou um espaço de diálogo proporcional à sua ambição. Falo do ano de 1789, ou ainda, da Revolução Francesa. Se naquela época o desejo de “liberdade, igualdade e fraternidade” – mesmo com todas as desconfianças que estes conceitos pressupõem – conclamava uma revolução social, no fato posterior, o início do século XX, na Paris da Belle Époque, estes lemas não tardaram em chegar ao plano errante da subjetividade. A liberdade, a igualdade e a fraternidade já não eram mais um canto uníssono que vociferava contra a opressão de uma única cabeça. Eram as mãos que seguravam pincéis, dedos que se apoiavam em instrumentos musicais e letras redigidas para tonalizar a poesia que ressignificava no plano do simbólico o anseio por “um novo mundo”.
Não é preciso recuar na longitude do tempo para provocar outra reflexão. Os anos 60 catalisaram não só uma vontade epidêmica de revolução social, como feriu os olhares conservadores com uma ode vertiginosa à poesia dos corpos, dos abjetos e das multidões que se agitavam entre flores, protestos e liberdades mil. Se a queda do Muro (de Berlim) desnudou não somente a arquitetura falaciosa de uma possibilidade de socialismo – falo sobre o modelo específico da URSS – empoeirou os nossos olhos para a produção artística. Engana-se quem acredita que somos herdeiros privilegiados dos arautos de Maio de 1968 no campo das artes. A arte, por sua vez, que nos anos 60, 70 e 80 conservou sua vicissitude ao lado dos revolucionários (ou da esquerda, se preferirem) passou então, para a produção econômica, ou para a manutenção do status quo reforçado pela direita. O resíduo desta epopéia tragicômica é percebido desde os anos 90, quando a Indústria Cultural, o Mass Media e especificamente a Moda e os seus sistemas juntaram os últimos tijolos deste muro que parecia sólido, e levou-os para as passarelas, para os estandartes endiabrados e vociferantes das vitrines estáticas, para os sonhos oblíquos e distópicos das campanhas publicitárias.
Primavera Árabe e Occupy Wall Street
Na década de 60 e 70, ao lado das outras manifestações do espírito artístico, a Moda – essa espiã dos contra desejos – uniu-se de forma sábia aos ideários daquela época. Não temia o povo, a multidão e rua. Existiam as “exceções excessivas”, mas a História do Tempo encarregou-se de apaziguá-las, tornando este fenômeno, tipicamente ocidental e moderno, uma forma póstuma e apaixonada no século XXI: a lembrança de que a revolução já aconteceu, e que cabe a ela, somente a ela, ser o espelho nevrálgico da paixão que nos move desde que a Rainha perdeu sua cabeça na guilhotina. A liberdade, a igualdade e a fraternidade são uma passarela dissimulada.
A Primavera dos Povos de 2011 não foi somente uma revolução social propriamente dita. Foi, sobretudo, uma revolução do pensamento. Uma revolução do pensamento na medida em que agitou em regimes e locais específicos uma nova vontade de saber, fazer e ser. É simplificador e pós humano conciliar esta ideia com uma nova prática de um sistema de virtualidade. Como se este, cumprisse o papel de despertar uma primavera, longe do natural e próxima da paixão. Pode até ser, mas não neste estágio em que a humanidade se encontra. Hipóteses deixadas de lado, interrogo-lhes: como foi possível a organicidade e o teor dionisíaco das manifestações populares, apenas por conceitos humanistas, quando ainda esbarramos em questões legislativas e judiciais de cada território? Como foi possível, a indignação de um jovem de um regime ditatorial causar repercussão em um jovem que compartilhava o sonho americano? Talvez aqui, tenha chegado ao limite ou no início – não sei – de meu pensamento. Há algum tempo a minha obsessão pelas ruas causa-me um incômodo um desconforto, um desalento. Escrevi sobre isto inúmeras vezes aqui no BRRUN e em outros artigos de publicações de moda. E toda essa reflexão é para ser irônico e cínico ao lançar a indagação: quando a moda (e incluam as artes em geral) ocupará – também- as ruas?
Como em um oráculo provinciano, algumas notícias confirmaram as minhas teses. Primeiro, o anúncio de uma possível mudança de local de realização das semanas de moda brasileiras. Segundo, o esvaziamento do impulso criativo em sua própria engrenagem, e terceiro, e último, a manifestação política no último dia da São Paulo Fashion Week, que colocou na passarela da Cavalera estilistas reivindicando com camisetas a presença e o olhar do Governo Federal para a indústria da moda brasileira. Por uma peripécia do destino, que desconhecemos, a Cavalera apresentou sua coleção em um terreno de lixo. Ironias a parte, eis o momento da provocação: Paulo Borges e Cia, se querem mesmo uma atenção, ou se sonham mais alto – como esperamos de vocês criadores – digo-lhes com toda a prolixidade que o tema exige: abandonem os palácios e os templos da Moda e vão para a rua. Lá fora, uma multidão já conclama uma mudança, e pelo que sei e aprendi, a Moda tem aversão em ficar de fora das mudanças comportamentais e dos novos paradigmas. Se não olharmos para este momento histórico, simbolizaremos aquela que já foi um dia zeitgeist em um museu antiquado, empoeirado e longe dos desejos.
Por que ainda, em um tempo em que a Democracia e o capitalismo – que possibilita a sobrevivência da Moda em nossos sistemas – estão se modificando, os nossos estilistas e criadores insistem em provocar as multidões em salas fechadas, para um grupo seleto de pessoas, quem em sua maioria consomem este desejo no exterior do país? Quanta deselegância há na impalatável elegância da moda em opor-se às ruas, justo neste lugar que serve (ou já serviu?) de inspiração para a sua sobrevivência? Afinal, as roupas são para as manequins estáticas ou para as pessoas de carne, pele e osso que respiram e suspiram entre os corpos dispersos das ruas, alamedas e avenidas? Sejamos revolucionários novamente: ocupem, como acontece em Wall Street os espaços públicos. Não deixem que a Internet desnude o privilégio de meia dúzia de editores de moda – que nada entendem de Moda – ao mostrar ao público apaixonado, os desfiles em tempo real. Mostrem vocês! Enquanto o ônibus passa, enquanto uma senhora vestida de negro corcunda e lenta caminha por uma rua, enquanto um jovem bilionário passa em seu carro blindado, ou o limpador de sapatos deixa de ser menino, para ser rei. Não se trata de provocar uma epidemia consumista nas classes sociais. Esta babaquice é “setor contaminado” da publicidade. A Moda também esta na esfera dos sonhos, de entender as simbologias que pairam, de ser a catalisadora de uma época, de uma utopia, de uma nova possibilidade. A rua aqui, para os desavisados não é apenas esta via em si, mas a contaminação da Moda por tudo que é orgânico, próximo do corpo e das multidões. E não se preocupem com uma possível “pobreza” (diminuição) das coleções. Preocupem-se em mostrar que a beleza, nestes tempos horríveis é o antídoto para quaisquer autoritarismos. Lutem não apenas por um olhar econômico, mas que exista uma Cultura de Moda no Brasil, com tudo o que isto implica: museu, espaço de cultura e espaço de pensamento e reflexão. A última tentativa para este caminho, o “Pense Moda”, pensou tudo, menos a Moda em si. Na saturação provocada pela própria, que não soube se reinventar tornou-se mais interessante acompanhar a “Marcha das Vadias”, por exemplo. Explico. Além de sua função social, há uma urgência poética, de moda, de estética e de beleza na passarela autônoma, orgânica e plural que se agita nas avenidas…
Se a Moda abrir mão de sua insignificância em uma sala estática, e povoar o imaginário coletivo das ruas com apresentações abertas, voltar novamente a ocupar o espaço de reflexão e de pensamento consciente de seu significado na sociedade, assistiremos não só um retorno dos sonhadores de 60´s que souberam unir revolução social com a revolução estética, mas um impulso às outras artes – que andam tão tímidas – em provocar indignados na arena pública. Quem sabe ainda, dispensará do plano falacioso e enganador do discurso, os lemas de liberdade, igualdade e fraternidade que a colocou em cena na década de 90 e 00 (fast fashion, é um exemplo), e retomará para si estes conceitos como imagens-signos? Daí ainda, não há camiseta com pedido de ajuda à presidenta Dilma Rousseff que resolva. O problema, ou parte dele, será solucionado. Estúpidos: a crise não é econômica, é criativa…
BRUNNO ALMEIDA MAIA
Fotos: Divulgação