A Pele que Habito

Cicatriz Interior

Em determinado momento de ‘A Pele que Habito’, o personagem de Antonio Banderas avisa para não se olhar apenas as superfícies. A frase que poderia ser proferida em tom de aforismo é dita de maneira bastante ligeira dentro de um diálogo casual, mas obviamente revela claramente o comentário mais adequado sobre o filme. Num dos seus filmes mais desprovidos da abundancia cromática já usual, que ao longo do tempo se tornou inclusive um adjetivo para determinadas tonalidades e utilizações de cor, Almodóvar pinta uma superfície (vale ressaltar o quanto de pictórico são seus planos e sua decupagem) mais fria e cautelosa variando de tons pastel a sombras e aspectos mais frios.

Esta opção reflete bem as matérias primas de sua composição: a carne (pele) e o cimento (massa). Como bem mostra o título estaremos lidando no terreno da construção, um corpo e mais exatamente uma imagem moldada, erguida como uma habitação. O preenchimento dela mais do que órgãos ou estruturas físicas (biológicas ou sintéticas) é feito por sentimentos, ou seja, pelo imaterial ou pela essência, aquilo que não constrói, mas se nasce.

Através de uma quase assepsia visual dentro de sua filmografia, o filme vai delineando aos poucos e não é a toa que mais uma vez (a exemplo de outros de seus filmes como ‘Fale com Ela’) o roteiro seja o ponto alto de sua linguagem. Trocadilhos a parte, é interessante observar como de fato existe por trás dele a costura de uma grande unidade a ser mostrada e todo o filme trabalha seus elementos neste caminho da formação, dos retalhos de vestido rasgados em determinado momento do filme, a fantasia de tigre escondendo a original natureza das intenções, o gradativo mural frases e traços desenhados na parede e a referências às obras de Bourgeois. A alusão a Frankenstein também existe, é claro, mas não ela dá conta de todo o enredo e metáforas, mesmo que a inegável emulação ao suspense possa querer indicar uma atmosfera próxima da monstruosidade ou do crime. Mas não, não há (a) matéria original.

O que resta (enquanto sobra ou próprio enxerto) é somente a caricatura. Longe de desagradável ou incômoda, esta transfiguração de elementos soa elegante e bonita na estufa clínica de seus enquadramentos e composições que transbordam humanidade e respiração (“Eu respiro. Eu sei que respiro.”). Caricatura distante, mas inegavelmente presente de Shelley, mesmo que o roteiro seja baseado num romance de Thierry Jonquet; de Hitchcock com pinceladas mais agudas e quentes, própria da latinidade de sua genética; mesmo de seu próprio cinema na escolha de Banderas a resgatar os tempos áureos do pré mainstream de sua carreira enquanto diretor de renome artístico.

O que Almodóvar faz é brincar de criador, sendo curiosa a aproximação a outros dois filmes exibidos em Cannes este ano ao lado deste, ‘A Árvore da Vida’ e ‘Melancolia’, nos quais os cineastas, Malick e Von Trier, operam também a partir de uma explícita lógica divina ao dirigirem e criarem seus filmes. Pedro Almodóvar no caso se preocupa menos com a o macro ou o universal, até porque sua tendência é muito mais física do que metafísica, para se deter no orgânico, seja ele um vitro, dentro de microscópios ou chapas transparentes ou dentro dos corpos, chapados em tecidos e camas voluptuosas. Mais do que Deus, Almodóvar é o Diabo (ignorando as implicações e limitações religiosas desse antagonismo naquilo que ele tem de moralista), ou melhor ainda, um Dionísio brincando de ser Apolo.

Ele não é, e está galáxias de distância de ser, um Bresson a quem os atores eram chamados e serviam ao papel de modelos, mas certamente há um olhar específico para seus corpos espanhóis sempre tão cheios de vida como se estes fosse bonecos. Pois que os bonecos (atores) de Almodóvar não possuem sexo, assim como são ou aparentam ser as bonecas infantis, lisas e indefinidas em sua identidade nua. ‘A Pele que Habito’ reflete exatamente esta expressão do ator almodovariano, despido de sua sexualidade, pronto para viver e reviver (mágica cinematográfica) inúmeras vezes a mesma cena, podendo variar de cabelo, peruca ou não e vestuário, trocando suas cores, seu timbre, seu passado e seu presente.

Antes e depois de tudo um filme sobre a transmutação do corpo que atua. Em seu laboratório há maquiagens no lugar de bisturis e perfis psicológicos ao invés de prontuários clínicos. A descrição objetiva serve apenas a superfície, lembremos da frase já mencionada. Almodóvar não precisa de mais nada a não ser gradativamente ultrapassar a pele inicial e ir revelando derme a derme o que realmente há por trás de seus atores e por extensão, claro, de seus personagens. Numa só facada, para aproveitar o ensejo plástico e dúbio da metáfora, ‘A Pele que Habito’ incide num tema cada vez mais preciso em nosso tempo, tratando de uma antiga questão que mascara o desejo humano: a fronteira (real ou imaginária) entre aquilo que vejo (será que verei no futuro?) e aquilo que sou (ou já fui).

MATHEUS MARCO
matheusmarco@brrun.com

Fotos: Divulgação