Se há uma necessidade em nossa época é a de explicar os motivos, as causas e as gêneses do horror e das tiranias veladas. Relembrando o teatrólogo francês Antonin Artaud e o seu “teatro da crueldade”, nunca se falou tanto em crimes e na transformação da brutalidade do que se supõe humano como no século XXI. As mesmas décadas que reivindicaram para si a ordem das liberdades, dos progressos e das “evoluções”, assistem atônitas e anestesiadas o crescimento de genocídios, a separação do homem da natureza, e o prolongamento em outras plataformas, sejam elas tecnológicas ou industriais. As ameaças passam da ordem da vida, para a ordem das ideias, do discurso, da palavra. Inquietação lançada nas novas inquisições: afinal, o que produziu no homem este estado de recrudescimento, e em quais altares os seus deuses rezam agora, provocando não mais a mistificação da vida, mas a ausência que temos dela? Qual “religião” foi profanada para que se busque uma explicação à imagem apocalíptica do mundo?
É fato que a crise identitária de nossa época, não é somente a da ordem política, econômica e cultural, é antes de tudo uma crise das relações de poderes-saberes – se é que podemos falar em saber em uma sociedade que ordena somente o autoritarismo do conhecimento – e “ironicamente” a crise religiosa. Não o sentido de religião, como dogmatismo, fanatismo, doutrina e conjunto de crenças apenas, mas a religião, independente da fé, como arma de opressão, interdição e sujeição. Talvez a pergunta que caiba aqui seja: qual ópio que agora nos falta?
Invocarei não um estudioso, teórico ou filósofo, pelo menos neste momento, mas uma personagem do povo: o moleiro friulano Menocchio. Durante o século XVI, a personagem, não só existiu como sentiu a perseguição da Santa Inquisição, é figura central desta discussão. Considerado “analfabeto”, logicamente inculto, Menocchio encaixa-se no que podemos chamar, a priori, de discurso incompetente. Durante seus interrogatórios pelos oficiais da Santa Igreja, defendeu e expôs uma tese muito curiosa e peculiar para quem até então, não tinha tomado conhecimento das ciências e das teorias de Galileu Galilei. Dizia: “tudo era um caos, isto é, terra, ar, fogo e água juntos; e de todo aquele volume se formou uma massa, do mesmo modo como o queijo (grifo meu) é feito do leite, e do qual surgem os vermes, esses foram os anjos…”. Similaridades entre a forma do queijo e que a Galileu Galilei comprovaria, anos depois em sua teoria? Difícil responder, já que, se apropriando de Gramsci, este intelectual orgânico não nos deixou um discurso apoiado no plano da metodologia científica.
Nesta mesma época, duas cisões e dois fins apocalípticos rondavam o céu da Europa renascentista: o eminente desejo da queda da Monarquia, pela burguesia ascendente e o declínio da religião cristã como detentora da “verdade” e dispositivo de saber-poder. Afinal, se era a “cabeça do rei” que legislava, era a religião cristã que tornava possível essa legislação no plano da validação dos discursos. Foi pelo menos essa ordem que se estabeleceu até o fim da Idade Média, ou Idade das Trevas, e que ironicamente – os projetos “políticos” de controle dos corpos são irônicos – assistimos o nosso século XXI novamente classificar, por contas da onda de conservadorismo religioso (!) como um retorno à era da Idade das Trevas.
Um fantasma rondava a Europa: a burguesia. Deixada de lado, pelo menos em sua totalidade, pela Igreja, já que esta era uma ameaça aos seus planos mercantilistas e expansionistas, a partir do final da Idade Média, uma nova religião é tomada para estabelecer a ordem discursiva da burguesia. Não mais os santos, os relicários, os réquiens, o latim e a bíblia como simbologias da moralidade. A Santa Ceia da imagem do medo, para a imagem da libertação: é hora de colocar as ideias no campo científico.
Ora, não que a ciência não estivesse lá antes da tomada de poder pela ordem burguesa, o que diferencia a ciência moderna, ou Revolução Científica (termo cunhado por Alexandre Koyré, em 1939) do modelo que já existia desde a Grécia Antiga é a sua separação da Filosofia e a criação de um método científico. Se há uma revolução, quando a ciência torna-se o novo ópio do povo (Chaui) não é apenas o fato de que ela seja a única – suponho que não – que permita a revisão dos conceitos e a negação do que foi comprovado anteriormente. Se levarmos em conta este pressuposto partiremos para a ideia de que o mundo começou no século XV. E não foi bem assim…
No ocidente, a própria literatura bíblica nos mostra claramente essa negação dentro da própria religião: Abraão e a destruição de Sodoma e Gomorra; a declaração da existência de um só deus, criando a possibilidade de passagem do politeísmo para o monoteísmo; os judeus pós-cristo ao apropriar-se do direito da doutrina do “novo messias”, e “recentemente”, a Reforma Protestante e Martinho Lutero.
Não mais a negação como fator elementar para a comprovação de uma nova moralidade, mas justamente a revolução em provar o que era negado, por meio de um sistema de leis, criação de conceitos e ideias abstratas. A revolução não estava no mérito final, a ciência, mas no dispositivo que fez possível essa ciência se tornar a nova ordem moral, ora abrindo espaço para os silenciados falarem, ora silenciado as falas destes, por não encaixar-se na nova ordem do método. Método entendido também, como libertação e interdição. Paradoxos da vontade de verdade.
Como definiu Michel Foucault, “as luzes que descobriram as liberdades inventaram também as disciplinas”. Foi somente no projeto iluminista ou na Idade Clássica do ponto de vista foucaultiano, que a ciência torna-se Ideologia, ou nas palavras da filósofa Marilena Chaui: ciência da competência. Retorno de Menocchio, pluralizado não mais como pecado por desobediência à ordem estabelecida pela pastoral da carne, mas espalhada no corpo da sociedade, nas instituições de ensino.
O que é a Ideologia? Em seu “Cultura e Democracia: Discurso competente e outras falas“ Chaui explica que Ideologia, em termos gerais, é “um corpo sistemático de representações e de normas que nos ‘ensinam’ a conhecer e a agir. (…) o discurso ideológico é aquele que pretende coincidir com as coisas, anular a diferença entre o pensar, o dizer e o ser e, destarte, engendrar uma lógica da identificação que unifique pensamento, linguagem e realidade para, através dessa lógica, obter a identificação de todos os sujeitos sociais com uma imagem particular universalizada, isto é, a imagem da classe dominante”.
A autora ainda exemplifica a recusa do saber pela Ideologia, e admissão apenas pelo conhecimento “recusar o não saber que habita a experiência, ter a habilidade para assegurar uma posição graças à qual possa neutralizar a história, abolir as diferenças, ocultar as contradições e desarmar toda a tentativa de interrogação”. Neste sentido, há uma demarcação da diferença entre Ideologia e saber. No último as ideias são produtos de um trabalho, enquanto naquela as ideias assumem a forma de conhecimentos, isto é, de ideias instituídas.
Mas sob quais aspectos estas ideias instituídas, transformadas em discurso competente, assume o papel de normalizadora da sociedade disciplinar? Em primeiro lugar, não é qualquer um, em qualquer momento, e em qualquer meio que fala. Em seguida, ela adquire na organização da burocracia seu viés autoritário. Encontra na divisão hierárquica do modelo burocrático o seu espelho no corpo social.
Em tempos que ecoam as “promessas” do recente avanço da tecnologia percebemos de que na era das virtualidades todos possuem a liberdade de dizer, falar, colocar na ordem do discurso a sua opinião? O conhecimento adquirido por meio da ciência torna-se dispensável? Penso justamente o contrário, o que supomos como liberdade aqui não é a liberdade de quem fala, mas a liberdade em reiterar mais uma vez o enunciado já dito anteriormente. Os textos que se multiplicam nas pesquisas, não são validados se não pelo discurso já dito anteriormente. Neste caso, os das liberdades virtuais, creio eu, trata-se de comentar o que já foi escrito, mas sem a censura prévia de um “cientista”. O olhar de julgamento passa então para quem interage, retirando então do “mestre”, do educador, do professor, do magistrado, ou em tempos antigos do padre, a responsabilidade de dizer se aquilo é valido ou não, ou para ser mais binário, já que estamos em uma sociedade de duplos, a problemática da verdade e da mentira. Criaremos então, a partir disto uma nova religião?
Em seu texto “Sobre a Verdade e a Mentira”, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche apresenta a sua possibilidade de dois tipos de homens: intuitivos e racionais. Segundo o autor, para a existência atual do último foi necessária a transformação da vida em formação de conceitos e ideias universais. Retirou-se a essência de cada particularidade, individualidade e sentido único das coisas, transformando-as em linguagens de apropriações, criando assim um mundo que se justifica por métodos, leis, privilégios, subordinações e demarcações de limites. Esse homem foi o que criou a ideia de verdade, e para afirmá-la negou a mentira. Só há para Nietzsche um modelo de homem intuitivo que corresponda o oposto, o mythos vs logos: o grego intuitivo. Nas sociedades gregas, o mito, também trazido à luz científica no século das luzes, como religião ou explicação das coisas, possuía um caráter artístico. O mito só era contado e só se validava enquanto arte. Sua poesia era dita e ouvida nos teatros, templo da morada de Dionísio, aquele que personifica a vida para além do bem e do mal. Para os gregos, é como se fôssemos deuses e demônios em contaste estado de luta.
Nas palavras de Nietzsche: ”Há épocas em que o homem racional e o homem intuitivo ficam lado a lado, um com medo da intuição, o outro escarnecendo da abstração; este último é tão irracional quanto o primeiro é inartístico”, ou para a análise filosófica política de Chaui, “existe uma fúria inquisitorial que se abate, em certos países, contra esse saber enigmático que, na falta de melhor, chamaríamos de ciências do homem e que, quando não são meras institucionalizações de conhecimentos, instauram o pensamento e se exprimem em discursos que, não por acaso, são considerados incompetentes”.
Para despertar os deuses que dormem nos museus: perguntaremos se nestas “incompetências”, a Filosofia merece destaque ao lado do que convencionei chamar acima das “liberdades virtuais”? Pode até ser que surja um novo modelo de religare, mas o deus agora prepara o seu altar para uma nova guerra – fim da Idade Média atual? – longe das causadas pelas guerras santas, pelas guerras bacteriológicas, pelas guerras nucleares e pelas guerras virtuais, mas mais próxima daquilo que o século XXI e a ciência tomaram para si: o discurso. A angústia de guerra do século XXI é a das “liberdades de expressões”. Sem silêncio. Não há atrocidade lá fora.
Ponto de Vista: “O queijo e os vermes” – O cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição, por Carlo Ginzburg. Editora Companhia das Letras (www.companhiadasletras.com.br)
BRUNNO ALMEIDA MAIA
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