Vênus de Velasquez.
Tomo I – O desejo
“Pois que Eros é filho de Pínia e Poros, eis qual é a sua condição. É sempre pobre não é de maneira alguma delicado e belo como geralmente se crê; mas sujo, hirsuto, descalço, sem teto. Deita-se sempre por terra e não possui nada para cobrir-se, descansa dormindo ao ar livre sob as estrelas, nos caminhos e junto às portas. Enfim, mostra claramente a natureza da sua mãe, andando sempre acompanhado da pobreza. Ao invés, da parte do pai, Eros está sempre à espreita dos belos de corpo e de alma, com sagazes ardis. É corajoso, audaz e constante. Eros é um caçador temível, astucioso, sempre armando intrigas. Gosta de invenções e é cheio de expediente para consegui-las. É filósofo o tempo todo, encantador poderoso, fazedor de filtros, sofista. Sua natureza não é nem mortal nem imortal; no mesmo dia, em um momento, quando tudo lhe sucede bem, floresce bem vivo e, no momento seguinte, morre; mas depois retorna à vida, graças à natureza paterna. Mas tudo o que consegue pouco a pouco sempre lhe foge das mãos. Em suma, Eros nunca é totalmente pobre nem totalmente rico”. – Platão (O Banquete).
Se é na Genealogia dos Deuses ou Teogonia, poema mitológico de Hesíodo, datado de 1022, que o deus Eros configura-se como significante do desejo, será em nossa história recente, precisamente no limiar da Idade Moderna, que Freud colocará esta questão – representada na mitologia grega por Eros – na ordem do discurso, ou para ser mais preciso, no limite da religião moderna, a ciência. Não que este desejo em falar do desejo não estivesse presente em nosso cotidiano e história. Não que este desejo tenha sido um objeto particular da modernidade. Muito menos a ideia de que só foi possível idealizar este desejo, por isto transpô-lo para as nossas realidades, após o progresso contínuo das ciências e modalidades discursivas. Parece-me que o mais apropriado é entender que a mecânica de inclusão e exclusão da maneira governamental dos corpos a partir da Idade Moderna (século XIX) passa, sobretudo, pela questão em se falar, colocar na ordem do dia, pautar, atrair, subtrair, esconder e aparentar esta questão tão próxima, por isto distante, que é a do desejo. Penso que não é à toa a utilização desta simbologia, que desde os gregos, tem mostrado a imagética do deus. Eros é o limite entre a vida e a morte. É ao mesmo tempo o princípio do caos e do cosmos, da desordem e da ordem, ou se preferirem, a representatividade dos extremos.
É sabido, e para isto necessitarei de algumas linhas, que as teorias sobre a sociedade de consumo apropriaram-se desta questão do desejar para problematizar suas ideias. Basta recuarmos no tempo, e os exemplos serão múltiplos: a Revolução Industrial, as ideias das liberdades de mercado, colocadas pela teoria liberal, e mais recentemente, a mudança dos padrões comportamentais de consumo advindos da década de 50. Mas há algo, penso eu, que ainda não foi devidamente explicado: em como este desejo aproximou e ao mesmo tempo distanciou toda a lógica do pós-guerra, seja reiterando o desejo pelo desejo, seja procurando medidas em afastar os desejos pelos desejos? Basta pensarmos que, de um lado, temos os aparatos contemporâneos do mass media, da Indústria Cultural e de consumo, por outro lado, temos a multiplicação, que se pretende quase fetichista, pelo não acúmulo do desejo, seja na ordem clínica e de controle dos corpos (psiquiatria, psicologia, terapias e religiões), ou na ascensão de um marketing ilusionista no território da ecologia, da sustentabilidade e das economias.
Desde o meu último artigo intitulado “Modotopia: A possibilidade de mudança do que é real” uma série de indagações, questões e reflexões sombrearam, ainda que rasamente, algumas disposições acerca deste fenômeno específico do ocidente e do século XX, que em minha particular opinião vai permitir que a questão do desejo torne-se audível e inaudível: a moda. E por quais motivos, apropriei-me da moda para assunto deste estudo? Em quais pontos há uma visibilidade, talvez sustentação, que aponte para um ponto de ruptura? Não pretendo retomar este assunto. Para melhor entendimento do leitor, sugiro a leitura do artigo citado acima.
Mas afinal, o que é a moda? Para os sociólogos, suponho, expressão ou fenômeno de uma sociedade, de uma massa, inscritos sob a égide do consumo pós 50´s. Alguns antropólogos, penso eu, colocarão esta questão na expressividade do individuo, do homem ou do sujeito. Não será necessário ir além, para imaginar o que pensam alguns economistas, historiadores e pensadores. Trata-se disto, mas também, não se trata de uma coisa, nem de outra. A moda, e explicarei o porquê, é uma modalidade discursiva simbólica, que por meio das modotopias ou das Ciências dos Sonhos (TV, Cinema, Fotografia, Teatro, etc) permitem o avanço de certos tipos de “comportamentos”. Em última instância, e pegarei este exemplo por ser o mais próximo, é ela quem permite que uma roupa se inscreva neste plano de discurso. A roupa ou qualquer objeto material que se pretende como moda, isolados em si, não pertencem ainda a esta esfera particular. Tomemos como exemplo, para os que necessitam das etimologias, a gênese da palavra moda, que significa costume e provém do latim modus. Neste ponto, discordo de alguns historiadores que propõem o surgimento da moda em meados do século XV, precisamente anterior ao período Clássico, nos termos foucaultiano, ou Renascença no tradicionalismo. Não se trata de um revisionismo histórico, muito menos de um deslocamento conceitual. Ao propor esta teoria, lanço meu olhar para a seguinte questão: como seria possível falar em moda, tal qual a conhecemos, sem a necessidade permanente, vigilante e expositiva do olhar do outro? Não que o que era produzido e simbolizado no século XV não fosse moda. Não que as criações dos costureiros, e mais tarde de estilistas não se dispusessem a este recurso. Não se trata disto, mas sim em perceber, dentro do conceito da biopolitica de que a moda é um fenômeno recente, datado, petrificado nos sonhos em falar e negar o desejo na posterioridade da década de 50.
Se há uma mudança comportamental na transição do que convenho chamar de pré e pós moda não foram as tendências – aliás, termo recente – mas sim na própria estrutura e na própria ocupação da moda. Em resumo, é o que tenho apontado, partindo que a moda só é possível, e só podemos pensá-la assim, locada à questão da Ciência do Sonho ou das modotopias: “É o dispositivo onde todas as atividades que compõem a Ciência do Sonho: teatro, cinema, fotografia, música, dança, artes plásticas, TV, Rádio, Propaganda, se encontram. É o local de realização da identidade do Mesmo pelo Outro. Em minha análise, este período é possível com a colocação da moda no contemporâneo, no pós-prêt-à-porter, especificamente com a chegada de um aparato de espetáculo para a moda, ou historicamente e ironicamente, na década de 60 e 70, quando os ideais libertários se apropriam e fortalecem esta linguagem. É ainda, o meio de transição possível para estabelecer uma nova modalidade de relações, pautadas, atualmente nas tecnologias virtuais”. E é neste ponto, que eu gostaria de me ater: da mudança e do deslocamento da figura de Eros, iniciados com as exposições de Freud sobre os desejos contidos nos mitos. É neste ponto que pretendo amadurecer a ideia de que a moda, a partir da segunda metade do século anterior, deixará de ser apenas, por isto ao mesmo tempo criará esta ilusão – de dado mercadológico e expressividade do ser. É ainda, neste jogo da soberania limitada e definida do Mesmo e do Outro, que se situa a reinvenção do que entendemos e ainda, entenderemos como os novos desejos.
Eros, Vênus e Eros de Boucher e Freud.
Tomo II – O desejado
Os sujeitos só existem na medida em que as instituições existem. Estas são as formadoras, detentoras e detentas dos sujeitos. O que há entre este caminho, este meio é a identidade. A identidade não deve ser, a meu ver, entendida como um fim nas sociedades contemporâneas, mas como um meio. Um meio de prevenir, remediar, interceder, chocar e criar a ilusão de que, são estes sujeitos os detentores das autonomias e das verdades. Se há uma autonomia esta é a da instituição, que deslocada, por isto próxima do corpo, encoraja novos corpos. O sujeito e a identidade são os alicerces não só para as estruturas, para a vida em sociedade, mas para prevenir os medos criados por eles mesmos, ou ainda, pelas instituições.
Na afirmação acima, há um dado curioso para pensarmos a questão da moda como afirmadora das identidades. Penso também na tecnologia virtual. O que ambas possuem em comum, além de serem dispositivos recentes no contemporâneo? Ora, a princípio, formas de comunicação. Em seguida, tanto a moda como a tecnologia, podem – e é o que percebemos – se inscreverem em inumeráveis campos. Cito alguns, a título de exemplos: arte, cultura, negócios, mercado e meios de sociabilidade. Todavia, tanto a tecnologia como a moda é múltipla, justamente por se inscreverem em diversas instituições, e ao mesmo tempo não participarem categoricamente de nenhuma. Em qual instituição a moda e a tecnologia virtual se inscrevem? Ou a pergunta apropriada para esta questão, talvez seja, por quais motivos as duas modalidades se justificam em todos os campos de saberes e hierarquias institucionais?
No entanto, parece-me que há um fato histórico pós-guerra que possibilita à moda e à tecnologia um discurso quase uníssono. Não é de se estranhar, a integração cada vez mais constante entre estas duas modalidades de desejo (?). Nas últimas décadas, notamos que, além da apropriação das imagens de anunciação de um futuro incansável, há também uma contradição. Em qual período, se não o nosso, que duas modalidades de poder se interligam e se desligam pela mesma lógica? Em qual época se falou tanto na questão do não consumo indesejado, agressivo, fugaz e desnecessário, colocando a moda, ora como sustentação desta ideia, ora como impulsionadora? Parece-me que aí, talvez, algo se explique. Fala-se do não consumismo bestial da matéria-prima, seja ela roupa, alimentícia e produtivo, mas cada vez mais, desejamos e discursamos o fetiche prolongado em adquirir produtos tecnológicos. Contradição? Penso que não. Há um estranho paralelismo entre o surgimento e o fortalecimento da imagem de moda contemporânea e a descoberta dos meios tecnológicos virtuais. A primeira ganha status, por uma ironia quase dialética, na década de 60, das manifestações populares, da redescoberta do espaço público como agente político (pólis). A última, usada no período da guerra fria, nasce de uma mecânica de violência, para então discursar sobre a paz. E lá, no prolongamento desta gênese até as décadas recentes, as duas, afastadas das instituições estabeleceram (estabelecem) um acordo quase diplomático, neo-político – não apolítico -, monopolista e “livre” sobre a paz. Entre a moda e a tecnologia virtual as únicas fronteiras existentes, não são as matérias, os territórios, as nações e os Estados, mas, penso eu, a fronteira que separa cada vez mais – pensemos nas manifestações populares – a noção crítica de instituição do sujeito.
Com a chegada do ideal de “paz” percebemos muitas vezes que as primeiras medidas são tomadas neste sentido: não basta a paz, basta a liberdade de ter a liberdade em se conectar com o mundo. É desta desconfiança de minha parte, ainda muito grosseira e sutil, que nasce então o que chamo de biovirtualidade. A biovirtualidade é um aparato discursivo, prático, real e virtual de possibilidade de integração totalitária no modelo e na ordem da economia política. É ela quem permite que a paz seja possível, já que a sua legislação é única e a sua fronteira inexistente. É a substituta, por excelência, das modotopias. A biovirtualidade não é uma modalidade de modotopia, mas a prática e o estágio final desta.
A biovirtualidade e as modotopias estão presentes, não mais como mecânicas de reprodução de nossos sonhos e desejos entre o Outro e o Mesmo, mas sim, como um livro de história sempre aberto, incansável, incessante, que não para de relembrar, para negar e para também afirmar, o que um dia foi dito, do lado de fora, como passado. Talvez hoje, ao debruçar-me com estas palavras, entendo a frase que disse meses atrás, em um momento de ingenuidade intelectual “As guerras do século XXI serão as guerras discursivas”. Enquanto morre este homem que conhecemos, pautado pelas estruturas (as estruturas vão morrer), assistiremos atônitos e satisfeitos o nascimento de um homem que se inscreverá na guerra do discurso, pela busca, pela briga e pela brutalidade de conquistar o território virtual do Outro. É a etapa avessa do estágio atual, ou da modotopia. Nascerá então, uma nova imposição geográfica, marcada pelo desejo de legislar e juridicizar em nome de um “bem comum”.
Jum Nakao – A Costura do Invisível.
Tomo III – O deseja (dor)
Se há uma barreira, um rompimento, uma ruptura e uma quebra no discurso corrente de que a moda não seja apenas fator mercadológico, isto se deve, sobretudo, à sua inscrição no campo da cultura. Mas não se trata de uma cultura qualquer, atemporal, sempre presente e constante. Falo de uma cultura específica, nova, recente, que possibilitou a invenção do homem moderno na transição do século XVII para o XVIII. A curiosidade pelo passado em um contemporâneo marcado pela simbiose do positivismo de Auguste Comte, pelo progresso do liberalismo de Adam Smith e John Locke, foi capaz de mostrar este mesmo passado como um aspecto selvagem, distante, superado, exótico, fascinante e atraente. Além de uma questão temporal e de “hábito”, é de se pensar, nos motivos que levaram os países desenvolvidos a adotarem medidas quase protecionistas em relação às historicidades de suas modas. Museus, casas de pesquisas, centros culturais, publicações e uma série de eventos que promovem a inscrição da moda, não como um aspecto novo, recente e atual, mas como uma constante histórica. No caminho oposto, os países ditos subdesenvolvidos, que ao contrário de seus colonizadores, ainda não perceberam a moda como agente de cultura. Mas em qual cultura a moda se inscreve além daquela que, durante a criação das imagens são tomadas para si? A cultura enquanto instituição no regime que vigora desde o final do século XIX, e evidente passa por transformações: a cultura do mercado. Não um mercado qualquer, mas um que possibilite ao mesmo tempo arrancar estes dois aspectos da moda: o seu vínculo cultural e mercadológico. Parece suficiente apontar, que para a validação deste discurso nos países desenvolvidos, a academia, enquanto espaço do pensar ocupou-se deste papel, ao tomar para si, a moda não como um objeto científico, mas ao contrário, como possibilidade de reiteração de seu próprio discurso enquanto não ciência, enquanto não governamentalidade dos corpos, mas como uma forma expressiva da subjetividade. No contra senso desta ideia, e isto marca também a moda como um fenômeno recente, a apropriação de sua pré-estrutura pelo mercado. Daí surgem as grandes marcas, o estilista, o consumidor, o crítico de moda, os desfiles atuais, a colocação na Ciência do Sonho. Enfim, a economia apropria-se do que antes era apenas roupa e história, para transformá-la em “modos”. Nasce então um tipo específico, que desvinculado da roupa, se inscreve na massa identitária das imagens.
Afastada do perigo, do terreno sombrio, movediço, impermeável das palavras, a moda configura-se então como uma imagem. Não apenas a imagem da roupa, esta já não é suficiente de expressão, mas como uma imagética global, totalitária, política, de unificação da ideia de moda. Ao apropriar-se dos olhares públicos, a moda ganha seu último traje. O pudico se faz presente, equivocado, confuso e aleatório. Como uma espécie de pêndulo, ao se justificar na cultura e no mercado, retorna à sua origem de negação: o passado extravagante do desejo da roupa pela roupa. O anterior às sociedades desenvolvidas marcadas pela fome, pela peste e pela alusão ao Eros e ao desejo (Cosmos e o Caos). E no limite dos anos 90 e 00 do século anterior, o que é dito como uma moda, em uma espécie de cinismo, recorre a estas mesmas imagens para equilibrar-se com o discurso nascente ao lado da tecnologia virtual, de que os sujeitos podem se constituir aleatórios, deslocados, e por que não, retirados de qualquer possibilidade de regime formal das instituições. É neste momento, penso eu, que surge a ideia de biovirtualidade.
Donna Karan S/S 12 Campaign.
Tomo IV – A Sociedade da Fome
Em sua última campanha de Primavera/ Verão 2012, a marca estadunidense Donna Karan, comandada pela estilista homônima, fotografou sua campanha no Haiti. Sob as lentes de Russell James o fato causou – como era de se esperar – estranheza, desconfiança e polêmica. Nem um dado novo, para uma imagem de moda que desde a sua inscrição no que convencionei como modotopia, ousou ultrapassar os limites do luxo, da fome, da miséria e da sobriedade elegante. O que me interessa aqui, não é fazer um recorte ou juízo de valor sobre o fato, mas sim mostrar, apontar, evidenciar uma nova estética, uma nova possibilidade de imagem quase artaudiana às avessas neste campo: o da fome. Não uma fome qualquer, mas um desejo pela fome.
A modelo brasileira Adriana Lima no centro da imagem com dois haitianos ao fundo, fazendo contraponto. Três possibilidades de fomes simbólicas. A primeira, a fome do organismo, ou se preferirem, a do corpo. A segunda, a da imagem, e a terceira – que no momento em que escrevo me interessa particularmente – a do consumo. Não de um consumo pelo consumo, mas o consumo de uma ideia. Que ideia é essa? Evidentemente, trata-se de uma ideia que “ainda” não se inscreveu na nervura do real. A ideia que tem me despertado a curiosidade analítica em mostrar que é neste ponto que se concentra a estrutura e a genealogia da moda como modos. Não aquela anterior, século XV, mas uma específica, que será capaz – deduzo – de colocar estes dois agentes, moda e tecnologia virtual, em um novo saber específico que já se configura em nossas telas-mentes: a da governamentalidade dos corpos, para além de especificações institucionais. Novo dispositivo de discurso político? Sem resposta ainda, entendo que, no fundo, a moda tal como a idealizamos – e daí discordo com a fala de alguns estilistas apocalípticos – não morreu. Longe das liberdades das roupas como símbolos, e próximas das imagens que transformam as roupas, a moda, talvez, não exista enquanto prática subjetiva libertária. Talvez em um futuro próximo, ela cumpra o seu “destino” de operar como modus. Distante da prática do coletivo e próxima da prática do individual.
BRUNNO ALMEIDA MAIA
brunnoalmeida@brrun.com
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